Para iniciar essa reflexão relembro um verso de uma canção: “Ah quero ouvir a serenata, ver crescer a nossas matas e tocar um violão…” Ouvir, ver, crescer, tocar….verbos, ou seja, ações mais que necessárias nestes tempos atuais e exigentes de pandemia pela COVID-19.
Por: Célia Soares de Sousa
Tempo exigente de uma nova humanidade, um novo ser humano. Tempo que exige um jeito novo de ser e con(viver).
Um verbo que tem sido muito usado atualmente é reinventar, sobretudo, o reinventar a relação com o Tempo. Até outro dia o que imperava era a correria, a falta de tempo, um olhar descuidado com as pessoas da própria casa, onde cada um em um cômodo mal se olhava. Para muitas pessoas, o confinamento ou isolamento social tem sido um enorme desafio.
O modelo de sociedade atual organizado a partir da economia, exige de cada pessoa um processo constante de acelerar para ter, possuir, enfim. Impõe a ideia de que o contrário remete ao indiferentismo com o momento atual da sua vida, e do meio que o cerca. Passamos a maior parte do tempo preocupados em produzir e medir a nossa capacidade de produção.
Em geral vivemos ocupados e em movimento, no ir e vir dos compromissos. O confinamento ou isolamento social, para evitar um número maior de contaminados pelo Coronavírus, tem potencializado relações positivas ou negativamente; o cuidado com os mais vulneráveis dentro das casas; a convivência das famílias, conhecer as expectativas e sonhos dos jovens, e a animação das crianças tem sido, por vezes, novas experiências de muitas famílias. Por outro lado, há que se considerar os desentendimentos, os tédios, os lutos.
Esse pequeno mapa não traz nada de novo, pois são fatos do cotidiano. O que tem de novo nisso, a meu ver, é a sensibilidade para tantas situações antes desapercebidas.
Ficamos susceptíveis a uma nova situação que não se resume a um estado de guerra com armas, de busca de poder, de acúmulo de dinheiro, mas é um problema de grandeza ainda maior que atinge a saúde pública, que tem provocado a perda de tantas vidas.
Há, portanto, uma ruptura entre o antes e o depois: paralisação de atividades de trabalho, educação, atividades pastorais e de lazer, entre outros.
A chave para ligar o agora e o depois do isolamento social, com o Princípio da missão cristã é a Misericórdia de Deus, centrada na pessoa de Jesus que é Salvador.
Uma grande exigência para reinventar um novo modelo de sociedade será a prática das obras de Misericórdia (obras de misericórdia corporal: dar de comer a quem tem fome, dar de beber a quem tem sede, vestir os nus, dar pousada aos peregrinos, assistir aos enfermos, visitar os presos, enterrar os mortos. Obras de misericórdia espiritual: dar bom conselho, ensinar os ignorantes, corrigir os que erram, consolar os tristes, perdoar as ofensas, suportar com paciência as fraquezas do próximo, rezar a Deus pelos vivos e defuntos.).
Essas atitudes irão nos orientar para servir o ser humano, em todas as situações da sua vida, em todas as fraquezas, em todas as suas necessidades.
O Papa Francisco ensina que “a misericórdia não é uma palavra abstrata, mas um estilo de vida”, pois a pessoa pode decidir ser misericordiosa ou não, pode decidir envolver-se com os outros, ajudar, ou ser indiferente perante as necessidades do próximo.
Os padres da Igreja, por exemplo, Clemente de Alexandria (séc.III) se perguntava: “Quem mais teve compaixão de nós, de nós que, com muitas feridas – com os nossos medos, paixões, invejas, aflições e alegrias dos sentidos, estávamos sujeitos ao poder da morte, do príncipe do mundo das trevas? Jesus é o único capaz de curar estas feridas, porque acaba com todos os sofrimentos de modo absoluto e até a raiz”.
Deixemos Deus nos reinventar. Somos como barro nas mãos do Oleiro (Jr 18, 1-6), mas para se encontrar com o Oleiro o barro precisa entender que é barro. Um grande problema na humanidade é que o barro quer ser vaso sem ser modelado pelo Oleiro.
Deus cuida do seu povo e o trata com cuidado, para que corresponda à sua vocação, o orgulho, porém, nos impede perceber a gratuidade de Deus em nossa vida. “Este é o momento para dizer a Jesus Cristo: Senhor, deixei-me enganar, de mil maneiras fugi do vosso amor, mas aqui estou novamente para renovar a minha aliança convosco. Preciso de Vós. Resgatai-me de novo, Senhor; aceitai-me mais uma vez nos vossos braços redentores.” (Evangelli Gaudim, n. 3).
Refletir sobre nossa missão e vocação como batizados, discípulos missionários de Jesus Cristo para que N’Ele todos os povos tenham vida é uma ação fundamental para retornar ao Primeiro Amor de Jesus e perceber as ações necessárias.
A V Conferência de Aparecida em 2007 destacou os rostos sofredores que doem em nós como as pessoas que vivem nas ruas nas grandes cidades; migrantes; enfermos; dependentes de drogas e os detidos em prisões.
Hoje já são tantos outros, os rostos sofredores que doem em nós. (DAp, n. 407-430). Fortalecido pelo profetismo do Papa Francisco, o cristão discípulo missionário enfrentará, como profeta, as realidades que contradizem o Reino de Deus, para atuar em nome da fé com o objetivo de influenciar positivamente na construção da sociedade justa e solidária.
Outro aspecto importante é que “os cristãos leigos e leigas vivem sua fé no cotidiano, nos trabalhos de cada dia, nas tarefas mais humildes, no voluntariado, cuja vida está escondida em Deus, são o perfume de Cristo, o fermento do Reino, a glória do Evangelho.” (Doc. 105, CNBB, n. 35). Portanto, viver a fé é, também, cuidar uns dos outros a partir do próprio cotidiano.
Em 2016, o Papa Francisco exortou toda a Igreja para a prática da Misericórdia como ação concreta do amor que, perdoando, transforma e muda a vida. Afirma Francisco: “A misericórdia possui também o rosto da consolação. “Consolai, consolai o meu povo” (Is 40, 1): são as palavras sinceras que o profeta faz ouvir ainda hoje, para que possa chegar uma palavra de esperança a quantos estão no sofrimento e na aflição.
Nunca deixemos que nos roubem a esperança que provém da fé no Senhor ressuscitado. É verdade que muitas vezes somos sujeitos a dura prova, mas não deve jamais esmorecer a certeza de que o Senhor nos ama. A sua misericórdia expressa-se também na proximidade, no carinho e no apoio que muitos irmãos e irmãs podem oferecer quando sobrevêm os dias da tristeza e da aflição. Enxugar as lágrimas é uma ação concreta que rompe o círculo de solidão onde muitas vezes se fica encerrado. Todos precisamos de consolação, porque ninguém está imune do sofrimento, da tribulação e da incompreensão.”
Retomando um verso do Evangelho Joanino do Domingo da Ressurreição, onde Jesus disse aos seus discípulos: “Voltem à Galileia. Lá vocês me verão”. Ouvir Jesus e reconhecer no ressuscitado, o mesmo Jesus que acolhia os pobres, que anunciava Vida, que curava os doentes de uma sociedade doentia, que saciou a sede da mulher Samaritana, que reservou às mulheres o primeiro anúncio da Ressurreição, que revelou a face do Pai amoroso e não da Lei, nem vingativo, tudo isso era preciso muita intimidade com Jesus para assim reconhece-Lo.
Francisco, em suas meditações, alerta os cristãos e toda humanidade sobre o sofrimento dos pobres que cresce a cada dia. Cresce os sem-terra, os sem-teto e os sem-trabalho. É um grito profético que precisa tocar no mais profundo do coração; e não apenas como o toque suave de uma canção que acalma. É um grito forte, ensurdecedor da dor, da fome, da solidão e da Morte.
O Ressuscitado vai na frente. “Lá vocês o verão!” Lá O veremos nos pobres que recuperam a terra, o teto e o trabalho. Em cada gesto de fazer “rolar a pedra” da ganância, do egoísmo e do acúmulo e fazer brotar comida na mesa de quem passa fome com a partilha; do cuidado e atenção aos que se encontram solitários; no sentimento de pertença aos que são excluídos; na atenção e no cuidado com as mulheres e crianças que sofrem violência doméstica.
Viver a Ressurreição em tempos de isolamento social é tão ou mais exigente. Exige olhar para si, encontrar em si o Ressuscitado e descobrir que a vida acontece primeiro dentro de si, e essa mesma vida só terá sentido, se for doada. Sigamos para as Galileias dos pobres de hoje.
Sigamos para o encontro com o Ressuscitado. Ele continua nos exortando: “Lá vocês me verão”. Na vitória da Vida sobre a morte; da Partilha sobre o acúmulo; da Pertença sobre a exclusão; do Amor sobre a intolerância, será o Grande dia do Encontro alegre e festivo para “cantar uma canção” onde o “novo céu e a nova terra” vão chegar.
Em unidade com a Igreja fazemos nossa a mesma súplica dos discípulos de Emaús: “Fica conosco Senhor, pois já e tarde e a noite vem chegando” (Lc 24,29). “Ficai conosco, Senhor, acompanhai-nos, ainda que nem sempre tenhamos sabido reconhecer-vos. Ficai conosco, Senhor, quando ao redor da nossa fé católica surgem as névoas da dúvida, do cansaço ou da dificuldade;(…) ajudai-nos a sentir da beleza de crer em vós. Ficai em nossas famílias, iluminai-as em suas dúvidas, sustentai-as em suas dificuldades, consolai-as em seus sofrimentos e na fadiga de cada dia, quando ao redor delas se acumulam sombras que ameaçam sua unidade e sua natureza. Ficai, Senhor, com aqueles que em nossa sociedade são mais vulneráveis; ficai com os pobres, com os indígenas e com os afro-americanos, que nem sempre encontraram apoio para expressar a riqueza de sua cultura e a sabedoria de sua identidade. Ficai com nossas crianças e com nossos jovens, que são a esperança e a riqueza de nosso Continente; protegei-os de tantas insídias que atentam contra a sua inocência e contra suas legítimas esperanças. ” (Discurso Sessão Inaugural da V Conferência de Aparecida – 13 de maio de 2007). Permaneçamos firmes na fé, esperança e na caridade, como discípulos missionários do Senhor, vivendo a prática da misericórdia, seguindo os ensinamentos do Papa Francisco: “Jesus é o rosto da misericórdia. Precisamos sempre de contemplar o mistério da misericórdia. Há momentos em que somos chamados, de maneira ainda mais intensa, a fixar o olhar na misericórdia, para nos tornarmos nós mesmos sinal eficaz do agir do Pai”. (Misericordiae Vultus, Papa Francisco, 2015).