Esta Primeira Assembleia Eclesial não é apenas mais um acontecimento. É uma nova etapa em um rico processo sinodal na América Latina e no Caribe, que deu à nossa Igreja uma palavra e um rosto próprios.
Por Agenor Brighenti
A sua singularidade é, além de ser um acontecimento não só para bispos, mas sobretudo para tentar reavivar Aparecida. Aparecida é, basicamente, uma Conferência que se propôs a dar um novo impulso à renovação do Vaticano II, segundo a “recepção criativa” de seus eixos fundamentais, realizada em torno de Medellín, Puebla e Santo Domingo.
É Aparecida, que também está na base da Evangelii Gaudium do Papa Francisco, da mesma forma que é o Sínodo da Amazônia que inspirou o perfil do Sínodo universal sobre a sinodalidade da Igreja já em curso, desde as igrejas locais. Fez uma segunda recepção da renovação do Vaticano II. O significado de Aparecida, então, como o Pontificado de Francisco, está em ter relançado o Concílio Vaticano II e nos desafiado a uma “segunda recepção” deste kairós no novo contexto em que vivemos.
Como reconhecem os Bispos de Aparecida, “nos faltou coragem, persistência e docilidade à graça para continuar a renovação iniciada pelo Vaticano II e promovida pelas Conferências Gerais anteriores, em vista de um rosto latino-americano e caribenho de nossa Igreja” (DAp 100h) . Para reavivar o Concílio, Aparecida retoma uma das propostas centrais de
Santo Domingo, que é a “conversão pastoral da Igreja”. Os bispos afirmaram na ocasião: “a nova evangelização exige a conversão pastoral da Igreja.
Essa conversão deve ser consistente com o Conselho. Abrange tudo e todos: na consciência, na prática pessoal e comunitária, nas relações de igualdade e autoridade; com estruturas e dinamismos que tornam a Igreja cada vez mais presente como sinal eficaz, sacramento de salvação universal ”(SD 30). Medellín já havia falado da necessidade de uma “nova evangelização” para realizar a renovação conciliar, categoria que o Papa Paulo VI acolheria na Evangelii Nuntiandi e lhe conferiria um caráter operacional (cf. EN 80, 40, 25).
O Papa disse que “uma nova evangelização, para ser nova, requer um novo fervor, novos meios e uma nova forma de expressar a mensagem. Em última análise, a conversão pastoral da Igreja e a nova evangelização referem-se aos Santos Padres na Igreja Antiga, que falavam do imperativo de “uma Igreja em contínua reforma” – ecclesia semper reformanda, como dirão os reformados.
O Vaticano II, no seu retorno às fontes bíblicas e patrísticas, faz eco a esta exigência, afirmando na Unitatis Redintratio, que “a Igreja peregrina é chamada a uma reforma perene” (UR 6). Nesse mesmo sentido, Dom Helder Camara gostava poeticamente de repetir que “a Igreja precisa mudar constantemente para ser sempre a mesma Igreja de Jesus Cristo”.
Conversão integral e os quatro sonhos proféticos A partir da exigência de uma “conversão pastoral da Igreja” para impulsionar a renovação do Vaticano II, o Sínodo da Amazônia falará da necessidade de uma “conversão integral”, que se desdobra em um conversão pastoral, em uma conversão cultural, em uma conversão ecológica e em uma conversão sinodal.
Por sua vez, o Papa Francisco, dando caráter oficial e assumindo o Documento Final em sua Exortação Querida Amazônia, oferece a essas quatro conversões um horizonte utópico, apontando para quatro sonhos: um sonho social, um sonho cultural, um sonho ecológico e um sonho eclesial.
Assim, convergem a “conversão integral” do Documento Final do Sínodo da Amazônia e os quatro sonhos da Querida Amazônia. Tanto a conversão integral como os quatro sonhos se situam na perspectiva da necessidade de dar um novo impulso à renovação do Vaticano II e sua “recepção criativa”, realizada na América Latina e no Caribe.
Os quatro sonhos Assim, em sintonia com a conversão pastoral da Igreja, resgatada por Aparecida e que esta Assembleia quer reviver, o Papa Francisco na Querida Amazônia, através de quatro sonhos, projeta o horizonte de uma evangelização, que desafia particularmente esta Assembleia eclesial:
a) Um sonho social: uma América Latina e Caribe que lute pelos direitos dos mais pobres. É condição para que a voz dos excluídos seja ouvida e a sua dignidade promovida ”(QAm 7). O Papa Francisco adverte que, diante da situação que nos cerca, não podemos nos acostumar com a injustiça e permitir que ela anestesie nossa consciência social. Como
Moisés, é preciso indignar-se (cf. QAm 15), porque a colonização ainda não acabou, antes se disfarça e se disfarça (cf. QAm 16). É preciso superar a mentalidade colonizadora (cf. QAm 17).
b) Um sonho cultural: uma América Latina e Caribe que preserve sua riqueza cultural. Uma riqueza, em que a beleza humana brilha de forma tão variada ”(QAm 7). O Papa destaca que em nosso continente muitos povos e nacionalidades convivem em um poliedro de culturas, algumas em situação muito frágil. E que hoje o consumismo, dentro de uma economia que mata, tende a homogeneizar as culturas e a enfraquecer a imensa variedade cultural, que é um tesouro da humanidade (cf. QAm 33). Deixando para trás qualquer postura colonizadora, deve-se cultivar sem desenraizar, crescer sem enfraquecer, promover sem invadir (cf. QAm 28). É preciso amar as raízes e cuidar das identidades (cf. QAm 33).
c) Um sonho ecológico: um continente que guarda suas belezas naturais. É urgente cuidar da Casa Comum porque milhares de espécies vegetais e animais desaparecem todos os anos, e não poderão mais dar glória a Deus com a sua existência ou comunicar-nos a sua própria mensagem. O Papa recorda que, ao lado da ecologia da natureza, existe a “ecologia humana”, que, por sua vez, está ligada a uma “ecologia social” porque “tudo está interligado” (cf. QAm 41). A situação atual do nosso planeta impõe um novo estilo de vida, mais fraterno e mais respeitoso dos limites da natureza (cf. QAm 56).
d) Um sonho eclesial: uma Igreja com rosto latino-americano e caribenho. Para Francisco,
promover uma Igreja com rosto próprio é concretizar a cultura do encontro em direção a uma harmonia multiforme (cf. QAm 61). Recorde-se que a Tradição da Igreja não é um depósito estático, mas a raiz de uma árvore que cresce (cf. QAm 66) na interculturalidade, dando origem a uma Igreja de rosto multiforme (cf. EG 117). Uma Igreja que assume o rosto dos seus povos necessita de concretizar “uma cultura eclesial própria, marcadamente laica”, que proporcione “uma presença capilar e protagonista dos leigos na Igreja”3 (QAm 94), com a criação de ministérios a eles confiados (cf. QAm 93). Sem esquecer as mulheres, porque “numa Igreja sinodal, elas precisam de ter acesso às funções e serviços eclesiais”, para que possam “expressar melhor o seu lugar específico na Igreja” (QAm 103).
A conversão pastoral da Igreja
A conversão pastoral da Igreja, proposta por São Domingos, resgatada por Aparecida e assumida na Evangelii Gaudium como um caminho de renovação para toda a Igreja, é uma boa forma de realizar os quatro sonhos projetados pelo Papa Francisco. Na medida em que engloba a Igreja como totalidade dinâmica, a conversão pastoral aponta para mudanças em quatro esferas:
a) Conversão na esfera da consciência da comunidade eclesial. Visto que a conversão pastoral da Igreja deve estar em coerência com o Concílio, a conversão no âmbito da consciência eclesial consiste em assumir a eclesiologia do Povo de Deus do Concílio Vaticano II (cf. DAp 100b). Vai além da concepção de uma Igreja composta por duas classes de cristãos – clero-leigos, para entendê-la como uma comunidade ministerial inteira, na corresponsabilidade de todos os batizados.
b) Conversão no campo das ações pessoais e comunitárias. A renovação conciliar requer práticas consistentes com suas propostas. Existem modelos pré- pastorais conciliares, como a “pastoral conservacionista” denominada por Medellín, que respondiam às necessidades de seu tempo, mas que se tornaram obsoletos. Uma ação pastoral que promova a “vida plena” para todos deve ser uma resposta aos desafios de hoje, especialmente ao clamor dos pobres. A Igreja, «advogada da justiça e defensora dos pobres» (DAp 395), deve fazer com que a opção preferencial pelos pobres «ultrapasse todas estruturas e prioridades das pastorais» (DAp 396).
c) Conversão no domínio das relações de igualdade e autoridade. O testemunho do amor fraterno é antes de tudo o anúncio do Evangelho (cf. DAp 138). Não há conversão pastoral da Igreja nas suas relações, consistente com o Concílio, sem a erradicação do clericalismo. Aparecida fala da necessidade de uma “atitude de abertura, diálogo e disponibilidade para promover a corresponsabilidade e a participação efetiva de todos os fiéis na vida das comunidades eclesiais” (DAp 368).Expressão da corresponsabilidade de todos os baptizados é o exercício do sensus fidelium, no seio de uma Igreja sinodal.
d) Conversão no domínio das estruturas. Por fim, a conversão pastoral requer uma revisão profunda das estruturas da Igreja. Aparecida afirma que a firme decisão missionária de promover a cultura da vida «deve permear todas as estruturas eclesiais e todos os planos pastorais, a todos os níveis,também como toda a instituição eclesial, abandonando estruturas obsoletas» (DAp 365). Em relação à instituição eclesial, a conversão no âmbito das estruturas diz respeito diretamente aos organismos que asseguram o exercício da sinodalidade de todo o Povo de Deus, como os Conselhos Pastorais e as Assembléias em todos os níveis. No plano nacional, a exemplo da Conferência Eclesial da Amazônia (CEAMA) e desta Primeira Assembleia Eclesial Latino-americana e Caribenha, as Conferências Episcopais são desafiadas a integrar melhor o exercício do sensus fidei de todo o Povo de Deus.
Na Igreja local, a paróquia necessita de uma reconfiguração urgente, com a sua “setorização em unidades territoriais menores, com equipes de animação e coordenação que permitam uma maior proximidade de indivíduos e grupos” (DAp 372).