As novas (velhas) faces do conservadorismo católico

Três recentes episódios públicos chamaram a atenção para um tipo de catolicismo que durante muito tempo parecia estar restrito a poucos espaços e sem muito alcance social. O primeiro foi a tentativa de execrar publicamente um frade franciscano por ter celebrado uma missa em memória de Dona Marisa Letícia da Silva.

Por Jorge Alexandre Alves

O segundo episódio foi a cruzada difamatória contra a CNBB e a Campanha da Fraternidade, por meio da qual se acusa o centro de poder da Igreja do Brasil de apoiar entidades comunistas. E mais recentemente, a repercussão envolvendo o trágico assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes.

Quem pensa tratar-se de episódios isolados estão enganados. Poderíamos mencionar ao menos outros cinco casos em que reações muito parecidas ocorreram, de 2016 para cá. Ao que parece, os segmentos mais conservadores do catolicismo tomaram a iniciativa e “saíram do armário”.

Em todos esses casos podemos constatar alguns elementos em comum: a presença de grupos e lideranças católicas distorcendo os fatos. Por isso, atacaram agressivamente pelas redes sociais os envolvidos nestes eventos, sejam eles pessoas vivas, organismos oficiais da Igreja ou mesmo uma pessoa executada. Reproduzem as chamadas “fake news” sem checar suas fontes e sem respeitar os princípios mais básicos da piedade cristã, propagando ódio, calúnias e inverdades. Nestes fatos, a arquidiocese do Rio de Janeiro aparece seja como local efetivo (o território da arquidiocese equivale a área do município do Rio de Janeiro) dos eventos ou como lugar das manifestações contrárias mais ácidas. Se tomarmos o caso de Marielle como exemplo, nem ao menos se respeitou a dor e o luto de familiares e amigos. Um padre carioca chegou inclusive a insinuar que o Papa não havia telefonado aos parentes da vereadora.

Outro aspecto marcante envolvendo esses episódios é a postura do clero, sobretudo de quem é investido de alguma autoridade eclesiástica. Aqui temos um problema muito sério: o silêncio condescendente, omisso ou o apoio aberto de membros da hierarquia aos extremistas confere certa legitimidade a esses grupos. Aos olhos do “católico médio” – aquele que vai à missa, segue as mídias católicas e frequenta procissões ou outras devoções – os “haters católicos” parecem contar com respaldo oficial. Isso permite que tais mensagens de ódio e intolerância desses grupos se convertam em instrumentos de cooptação de agentes de pastorais (como catequistas, músicos e membros da pastoral familiar) e leigos em funções de coordenação em nível local e diocesano. Provavelmente é o que já vem ocorrendo em muitas dioceses ou espaços eclesiais de perfil mais conservador, como na cidade do Rio de Janeiro.

Mas o que significa esse fenômeno? Quem compõe essa onda conservadora? De uma forma mais ampla parece que o fundamentalismo católico ganha espaço, ou ao menos anda fazendo muito barulho pela internet. Longe de ser um bloco homogêneo, o que temos são variados grupos que hoje estão irmanados por percepções da realidade muito próximas, o que nos permitiria classificá-los todos com uma expressão carregada de picardia: Catolibãs. Ou seja, católicos que agem com elevado grau de intolerância e agressividade a ponto de os tornarem comparáveis aos talibãs afegãos.

Em comum, além da postura agressiva manifestada através das redes sociais, reside neles uma visão de que a esquerda brasileira atual é constituída em sua totalidade por comunistas – como se isso fosse algo pejorativo…. É uma compreensão tosca e anacrônica de nossa conjuntura política, porque fica parecendo que voltamos à década de 50 do século passado, no auge da Guerra Fria. E que ser “de esquerda” é necessariamente ser anticatólico. Também pensam semelhante quanto às temáticas da moral cristã. Negam-se a discutir a descriminalização do aborto, o acesso à Comunhão para casais em segunda união e propagam uma excrescência conceitual chamada de “Ideologia de Gênero”. Trata-se de expressão carente de qualquer fundamentação teórica academicamente relevante e que apenas alimenta distorções quanto às discussões de gênero nos espaços eclesiais.

Outro elemento em comum reside no ódio à Teologia da Libertação, grupos, pastorais e movimentos que se aproximam dessa perspectiva pastoral são perseguidos e difamados pelas mídias sociais, e tratados como hereges, como células comunistas dentro da Igreja. Colabora muito na disseminação deste tipo de mensagem a formação teológica do clero nos seminários diocesanos. Ela alimenta preconceitos e reforça uma certa “catequese” pela qual se transmite para os fiéis uma visão enviesada a respeito desta perspectiva teológico-pastoral.

Uma parte de bloco se constitui naquilo que se pode chamar de neointegrismo católico. É constituído por grupos e indivíduos que, a despeito dos ensinamentos e posturas do Papa Francisco, assumem posições político-religiosas que remontam a tempos anteriores ao Concílio Vaticano II, quando Pio XII ainda era Papa. Não são numerosos, mas fazem bastante barulho pelas redes sociais e parecem ter cada vez mais seguidores. Alguns desses grupos contam com o apoio de autoridades eclesiásticas, como acontece na Arquidiocese do Rio de Janeiro. Lá, o silêncio do arcebispo sobre os últimos eventos trágicos na cidade, a postura de membros proeminentes do clero ou com funções importantes na estrutura diocesana, e o apoio de um bispo-auxiliar a um dos mais extremistas destes grupos, ratifica essa observação.

No mesmo campo estão setores radicalizados do pentecostalismo católico, residentes principalmente em algumas das ditas comunidades de vida e aliança. A uma delas praticamente foi entregue a coordenação e a organização da Jornada Mundial da Juventude, em 2013, alijando do processo a Pastoral da Juventude, por exemplo. A outra se constituiu em um grande império midiático e centro de disseminação de sua vertente católica, localizado no interior de São Paulo. Recebem peregrinos e visitantes de todo o Brasil semanalmente. Em muitos aspectos se parecem com as igrejas evangélicas pentecostais, promovendo um cristianismo de perfil intimista, que insiste no caráter mágico do sagrado. Defendem uma espiritualidade centralizada no louvor desconectado da realidade, no êxtase religioso e na cura divina. Sua marca católica está no resgate das práticas medievais de piedade popular – como a reza do terço e a adoração ao Santíssimo, na devoção mariana e a aparente obediência ao Papa.

Por outro lado, as mídias católicas que estes segmentos gerenciam vêm promovendo figuras que estão na contramão dos ensinamentos de Francisco. Destacam-se um dito professor leigo e um padre cuja indumentária lembra os tempos Pré-Conciliares. Este clérigo mantém um canal no YouTube, mas é sabido que foi afastado de suas funções de professor no seminário de sua diocese, e que houve um manifesto contrário à sua pregação assinado por 40 sacerdotes em sua cidade. Recentemente sua visita ao seminário diocesano do Rio de Janeiro causou espanto a segmentos progressistas da Igreja, que ignoravam que o padre em questão fazia palestras todos os anos aos seminaristas deste local.

Completam esse bloco grupos tradicionalistas já conhecidos, como a Opus Dei. Dentre todos talvez seja o de maior poder financeiro e influência política. Têm ligações com governantes, juristas, além de espaço garantido na grande imprensa. Outros como Arautos do Evangelho e Legionários de Cristo, ambos sob investigação do Vaticano, também fazem parte de campo ultraconservador. Caracterizam-se mais pelo elitismo de suas ações e pelo formalismo de suas regras, vestes e falas. Ainda que não o façam de forma pública, é sabido que se opõem aos ensinamentos do Papa Francisco.

Este campo, longe de representar a maioria dos católicos no Brasil, começa a se posicionar publicamente de forma mais aguerrida, sem que a CNBB ou um dos cardeais brasileiros na ativa se manifeste em relação a eles. Ao contrário, o que parece é que estes grupos conseguiram, ainda que preliminarmente, emparedar o episcopado brasileiro. Ou será que contam com o apoio tácito de parcela representativa dos bispos?

Cabe ainda, para concluir, uma outra reflexão. A arquidiocese do Rio de Janeiro sempre foi um bastião do conservadorismo católico, no qual grupos ultraconservadores sempre tiveram livre trânsito e um protagonismo que não se via em outras dioceses brasileiras, salvo em poucos lugares até 25 anos atrás. Esse caldo de cultura religiosa acabou por formar uma geração inteira de leigos dentro uma visão estreita da fé cristã e do seguimento de Jesus. Além disso, tais grupos controlam a formação oferecida no Seminário São José, a ponto dos seus estudantes – oriundos de muitas dioceses brasileiras – não fazerem seus estudos teológicos na PUC-RJ. Por sinal, o seu curso de Teologia, que já foi dos mais prestigiosos do Brasil, hoje sobrevive a duras penas, dada a pressão conservadora sobre os padres jesuítas que administram a universidade.

Assim, podemos desconfiar se a conjuntura eclesial carioca não começa a se reproduzir em todo o país. Se isso for confirmado, entender quem são os protagonistas no contexto diocesano do Rio de Janeiro nos ajudaria a compreender melhor os meandros do conservadorismo católico brasileiro. Uma vez que ele, ao que parece, está “saindo do armário”, não seria a estrutura eclesiástica da arquidiocese do Rio de Janeiro e seu modus operandi um modelo que começa a ser imitado em escala nacional? Fenômeno que merece ser observado atentamente.

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