A tradicional festa de Corpus Christi ou Corpus Domini – expressão latina que significa Corpo de Cristo ou Corpo do Senhor – é uma comemoração litúrgica das mais antigas do catolicismo em todo o mundo.
Por: Dorcelina Gomes
Celebrada na quinta-feira após o domingo da Santíssima Trindade, a solenidade ocorre, por sua vez, no domingo seguinte ao de Pentecostes. São, portanto, 60 dias após a Páscoa, para sua realização. Como é uma data móvel no calendário religioso, este ano será no dia 3 de junho.[1]
Corpus Christi é uma solenidade religiosa cristã que celebra a instituição da eucaristia, um sacramento católico em que os cristãos fiéis católicos recebem do padre uma pequena partícula, acreditando se tratar do próprio corpo de Jesus.
Essa data recorda o ato realizado por Jesus na Quinta-feira Santa – véspera da sua morte, quando ceou com os seus 12 apóstolos. Ao partir o pão e partilhar o vinho, Cristo disse “Tomai e comei, isto é o meu corpo. Tomai e bebei, isto é o meu sangue”. Foi nessa ocasião histórica em que Jesus instituiu o sacramento da eucaristia. Por isso, nas missas, os padres rememoram a partilha do pão e do vinho no altar, proferindo as mesmas palavras ditas por Cristo durante aquela ceia derradeira.
As hóstias – partículas de farinha –, bem como o vinho utilizados na missa, tornam-se, respetivamente, o corpo e o sangue de Jesus, a eucaristia, o que na Teologia chama-se de transubstanciação.
A motivação litúrgica para a festa é o louvor merecido à Eucaristia, fonte de vida da Igreja. Desde o princípio de sua história, a Igreja devota à Eucaristia zelo especial, pois reconhece neste sinal sacramental o próprio Jesus, que continua presente, vivo e atuante em meio às comunidades cristãs.
Celebrar Corpus Christi significa, sobretudo, fazer memória solene da entrega que Jesus fez de sua própria carne e sangue, para a vida da Igreja. Também é uma forma de comprometimento do cristão com a missão de levar esta Boa-Nova a todas às pessoas.
Segundo Santo Agostinho, é um memorial de imenso benefício para os fiéis, deixado nas formas visíveis do pão e do vinho. Porque a Eucaristia foi celebrada pela primeira vez na Quinta-Feira Santa, Corpus Christi ocorre sempre numa quinta-feira após o vinho sangue de Jesus Cristo, em toda Santa Missa, mesmo que esta transformação da matéria não seja visível.
São Tomás de Aquino destacava três aspectos teológicos centrais do sacramento da Eucaristia. Como primeiro, a Eucaristia faz o memorial de Jesus Cristo, que passou no meio dos homens fazendo o bem (passado). Depois, a Eucaristia celebra a unidade fundamental entre Cristo com sua Igreja e com todos os homens de boa vontade (presente). Enfim, a Eucaristia prefigura a união definitiva e plena com Cristo, no Reino dos Céus (futuro).
A Igreja, ao exaltar este mistério, revive estas três dimensões do sacramento. Por isso, trata-se de uma solenidade a festa do Corpo de Cristo. Não raro, o dia de Corpus Christi é um dia de liturgia solene e participação de um número significativo de fiéis, principalmente nos lugares onde essa data é feriado.
As visões de Santa Juliana e o milagre de Bolsena
A origem de Corpus Christi é belga e remonta ao século XIII. Esta solenidade litúrgica foi instituída oficialmente pelo Papa Urbano IV (1262-1264) através de bula papal sobre o tema chamada Transiturus de Hoc Mundo, de 11 de agosto de 1264, para ser celebrada na quinta-feira após a festa da Santíssima Trindade, que acontece no domingo depois de Pentecostes. Ao instituir a data, concediam-se indulgências às pessoas que fossem à missa neste dia. Foi promulgada no ano de 1317 pelo Papa João XXII.
Conforme relato de alguns biógrafos, o papa medieval incumbiu o filósofo e teólogo italiano São Tomás de Aquino (1255-1274) de redigir um rito (“ofício”) para a celebração da data.
Na origem da festa de Corpus Christi estão presentes dados de diversas significações. Na Idade Média, o costume de celebrar a missa com as costas voltadas para o povo, foi criando certo mistério em torno da Ceia Eucarística. Todos queriam saber o que acontecia no altar, entre o padre e a hóstia.
Para evitar interpretações de ordem mágica e sobrenatural da liturgia, a Igreja foi introduzindo o costume de elevar as partículas consagradas para que os fiéis pudessem olhá-la. Este gesto foi testemunhado pela primeira vez em Paris, no ano de 1200. Entretanto, foram as visões de uma freira agostiniana, Juliana de Mont Cornillon, que historicamente deram início ao movimento de valorização da exposição do Santíssimo Sacramento.
Urbano IV, antes de ser escolhido papa, foi cônego de Liége (Bélgica) e se chamava Tiago Pantaleão de Troyes. Recebeu o segredo da freira agostiniana Juliana de Mont Cornillon (Juliana de Liége). Em 1209, na diocese de Liége, na Bélgica, essa religiosa, aos 16 anos, começa a ter visões eucarísticas, que se sucedem por um período de quase trinta anos. Nas suas visões, ela via um disco lunar com uma grande mancha negra no centro. Esta lacuna foi entendida como a ausência de uma festa que celebrasse festivamente o sacramento da Eucaristia.
Quando as ideias de Juliana chegaram ao bispo, ele acabou por acatá-las, e em 1246, na sua diocese, celebra-se pela primeira vez a festa do Corpo de Cristo. Seja coincidência ou seja providência, o bispo de Juliana vem a se tornar o Papa Urbano IV, que estende a celebração de Corpus Christi para toda Igreja, no ano de 1264.
Esta solenidade entra no calendário litúrgico da Igreja para evidenciar e enfatizar a presença real do Senhor Jesus no pão e no cálice consagrados.
Anos depois, quando era superiora de um convento, Juliana de Cornillon partilhou com outros religiosos a sua visão. Gradualmente, a comemoração se tornou uma festa nacional na Bélgica, até que passou a ser comemorada pela Igreja católica em todo o mundo e oficialmente instituída pelo papa após o Milagre de Bolsena, em 1264.
O decreto de Urbano IV teve pouca repercussão, porque o papa morreu em seguida, menos de um mês depois da publicação da bula Transiturus, o que retardou a adoção das celebrações.
Por outro lado, a difusão desta festa litúrgica só será completa no pontificado de Clemente V, que reafirma sua significação no Concílio de Viena (1311-1313). Alguns anos depois, em 1317, o Papa João XXII confirma o costume de fazer uma procissão, pelas vias da cidade, com o Corpo Eucarístico de Jesus. Mas se propagou por algumas igrejas, como na diocese de Colônia, na Alemanha, onde Corpus Christi é celebrada desde antes de 1270. A procissão surgiu na cidade alemã e difundiu-se primeiro neste território europeu, depois na França e na Itália. Em Roma, é encontrada desde 1350.
O Concílio de Trento (1545-1563) vai insistir na exposição pública da Eucaristia, tornando obrigatória a procissão pelas ruas da cidade. Este gesto, além de manifestar publicamente a fé no Cristo Eucarístico, era uma forma de lutar contra a tese que negava a presença real de Cristo na hóstia consagrada.
Atualmente, a Igreja conserva a festa de Corpus Christi como momento litúrgico e devocional do Povo de Deus. O Código de Direito Canônico (onde estão contidas as normas da Igreja) confirma a validade das exposições públicas da Eucaristia e diz que principalmente na solenidade do Corpo e Sangue de Cristo, haja procissão pelas vias públicas (cf. cân. 944). É uma festa de preceito, o que significa a participação dos fiéis na celebração da Missa neste dia.
Por volta de 1264, em uma cidade próxima a Orvieto (onde o então Papa Urbano IV tinha sua corte), chamada Bolsena (Itália), ocorreu o Milagre de Bolsena, no momento em que um sacerdote partia a Sagrada Hóstia. O padre Pedro de Praga vivia angustiado por não acreditar fielmente na transubstanciação. Decidiu então ir em peregrinação ao túmulo dos apóstolos Pedro e Paulo em Roma, para pedir o dom da fé. Ao passar por Bolsena, enquanto celebrava a Santa missa, foi novamente acometido pela dúvida. Na hora da consagração, veio-lhe a resposta em forma de milagre: a sagrada hóstia branca transformou-se em carne viva, respingando sangue, manchando o corporal (paninho branco no qual é colocado as sagradas espécies consagradas) e a toalha do altar. Impressionado, o padre comunicou o papa sobre o ocorrido, que mandou um bispo recolher a relíquia.
O papa determinou que os objetos milagrosos fossem trazidos para Orvieto em grande procissão no dia 19 de junho de 1264, sendo recebidos solenemente por Sua Santidade e levados para a Catedral de Santa Prisca. Esta foi a primeira procissão do Corporal Eucarístico de que se tem notícia.
O milagre de Bolsena impulsionou a comemoração do Corpus Christi por toda a Igreja Católica e não só na Bélgica, como até então era feito.
Para um maior esplendor da solenidade, desejava Urbano IV um Ofício para ser cantado durante a celebração. O Ofício escolhido foi composto por São Tomás de Aquino, cujo título era Lauda Sion (Louva Sião). Este cântico permanece até a atualidade nas celebrações de Corpus Christi.
As revelações particulares são importantes, pois atualizam na história as grandes verdades de fé já reveladas e que necessitam de um incremento em um certo momento histórico.
Devoção popular e a procissão
Mais do que uma festa litúrgica, a solenidade de Corpus Christi assume um caráter devocional popular. O momento ápice da festa é certamente a procissão pelas ruas da cidade, momento em que os fiéis podem pedir as bênçãos de Jesus Eucarístico para sua cidade. O costume de enfeitar as ruas com tapetes de serragem, flores e outros materiais, formando um mosaico multicolorido, ainda é muito comum em vários lugares. A procissão ganha força com tapetes de colorido vivo e de inspiração religiosa.
Algumas cidades tornam-se atração turística neste dia, devido à beleza e à expressividade de seus tapetes. Ainda é possível encontrar cristãos que enfeitam suas casas com altares ornamentados para saudar o Santíssimo, que passa por aquela rua.
A procissão de Corpus Christi conheceu seu apogeu no período barroco. O estilo da procissão adotado no Brasil veio de Portugal, e carrega um modo popular muito característico.
Geralmente, a festa termina com uma concentração em algum ambiente público, onde é dada a solene bênção do Santíssimo Sacramento. Nos ambientes urbanos, apesar das dificuldades estruturais, as comunidades continuam expressando sua fé Eucarística, adaptando ao contexto urbano a visibilidade pública da Eucaristia.
Esta festividade de longa data se
constitui uma tradição no Brasil, principalmente nas cidades históricas, que se
revestem de práticas antigas e tradicionais e que são embelezadas com
decorações de acordo com costumes locais.
[1] Serviu de fonte para embasar o artigo os sites da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (https://www.cnbb.org.br) e Dom Total (https://domtotal.com).