Da violência estrutural ao necrogoverno: breve radiografia do Bolsonarismo

 Não há dúvida: a violência no Brasil é estrutural. Desde o período colonial, foi sendo constituído um perverso arranjo social e político no qual os brancos e os proprietários de terra se impunham sobre os demais.

Por: Robson Sávio Reis Souza

A República, um golpe de elites (militares, maçons, proprietários de terra, juristas), nunca se constituiu em realidade de fato e os ideais republicanos jamais chegaram à plenitude. Desde então, as políticas de governo (ou a falta delas) ratificam a disposição das relações de poder: consolidam privilégios aos quais apenas determinadas categorias sociais têm acesso.

As desigualdades (de renda, étnico-raciais, culturais, de gênero, regionais), nosso pior e mais vergonhoso cancro, são naturalizadas.

Outro processo violento atribui a culpa pela pobreza, miséria, desemprego etc. ao “corpo mole” do “andar de baixo” que, na verdade, é vítima de múltiplas formas de opressão. A violência estrutural consiste em naturalizar a opressão (verdadeira causa do problema), apresentando-a como se fosse óbvia consequência do modo de ser ou de agir dos que são sufocados pelas elites.

Nos raros momentos históricos em que houve aumento da participação social e expansão de direitos dos cidadãos, parte da sociedade, notadamente os privilegiados das classes média, saíram dos armários da hipocrisia; se ressentiram e a reivindicaram o emprego de critérios meritocráticos.

Para justificar essa ordem social perversa, a violência cultural opera de diferentes maneiras: naturaliza as desigualdades, inverte as relações de causa e efeito, reduz ao silêncio as contradições da sociedade. Cria-se um imaginário social de acordo com o qual a violência direta, caracterizada pelos crimes, e a (violência) estrutural são tratadas como consequência natural do mau procedimento das vítimas (pobres, negros, índios, grupos vulneráveis…).  A violência, portanto, deixa de ser vista como tal e passa a ser considerada algo normal e natural.

As leis, não raras vezes, são elaboradas de forma abstrata e incompreensível, permitindo interpretações escusas de uma justiça encastelada. Tudo coroado com um aparato judiciário seletivo, moroso, ineficiente e ineficaz.

Depois da traumática experiência da ditadura militar, novos ares sopraram nas plagas tupiniquins. Abria-se a possibilidade de construção de uma nação socialmente justa, nos moldes de um estado de bem-estar social.

Mas, já nos inícios dos anos de 1990, o vento impetuoso do neoliberalismo, vindo do Norte, ameaçava, novamente, o sonho dos brasileiros.

No neoliberalismo, prevalece a ideia segundo a qual o poder público, portanto, o Estado, deve ser administrado como uma empresa. O Estado é pensado a partir de interesses privados; deixa de ter como base fundante o interesse público, respaldado na soberania popular, para se preocupar e garantir os interesses de uns poucos.

A política é criminalizada e o político deixa de ser um representante legítimo a mediar os vários interesses e conflitos sociais, políticos e econômicos e passa a ser um mero gestor, ocupado e preocupado com a eficiência de toda uma estrutura pública que, no neoliberalismo, é direcionada a maximizar os interesses econômicos e financeiros dos detentores do poder econômico em detrimento dos direitos dos cidadãos e dos interesses públicos.

No estado neoliberal, o espaço privado dos interesses dos poderosos é alargado ao máximo e, ao mesmo tempo, o espaço público dos direitos dos cidadãos é encolhido, ao mínimo.

A exclusão e as desigualdades passam a ser encaradas como artimanhas do povo, acionando todo tipo de violências do aparato estatal, através do incremento do estado policial-penal punitivo.

Nos termos do neoliberalismo é impossível uma democracia de fato. Só serve uma democracia de mentirinha, como essa que vivemos desde 2016.

Governos democrático-populares implementaram políticas de expansão do estado social por mais de uma década. E, paradoxalmente, conviveram pacificamente com a violência estrutural, sem proporem reformas profundas no aparato estatal.

E enquanto, governo e sociedade, todos “dormíamos em berços esplêndidos”, as velhas raposas sedentas de poder – as elites que sempre impuseram dor e sofrimento ao povo brasileiro -, tramaram nos bastidores e trataram de articular, em parceria com os Estados Unidos, um golpe parlamentar-jurídico-midiático, “com o Supremo, com tudo”, e retomaram o poder.

Por isso, o golpe de 2016 foi produzido dentro do arcabouço jurídico-institucional para salvaguardar os interesses de seus patrocinadores (banqueiros, industriários, os coronéis do agronegócio, rentistas, especuladores e elites da classe média – médicos, militares, advogados, juízes, promotores, líderes religiosos conservadores) em detrimento da Constituição e dos interesses populares, com vistas a interromper a construção de um estado social.

Nesse novo contexto, a sanha dessas elites e dos segmentos privilegiados da classe média não se contentavam mais com a implantação do neoliberalismo. Radicalizaram. E colaboraram na implantação de um estado ultraliberal.

É dentro desse novo quadro que foi eleito Jair Bolsonaro.

Seu núcleo econômico é o suprassumo do ultraliberalismo. É encabeçado por um banqueiro sem pudor, Paulo Guedes, que já serviu a um dos ditadores mais sanguinários das Américas: Pinochet.

Seu núcleo militar é composto por membros das Forças Armadas e das polícias  que continuam preocupados com os “inimigos internos” e, inebriados pelo poder, esquecem de proteger o país de ataques e interesses econômicos externos dos mais violentos.

Seu núcleo político encarrega-se do desmonte de políticas focalizadas, redistributivas e de proteção das minorias. Tem em figuras esdrúxulas que se postam como verdadeiros cruzados, sem compromisso com a ética pública e a justiça social.

O núcleo de controle social, que atua no adensamento do estado penal-policial-punitivo tem a missão do controle social, a ação ainda mais seletiva e violenta da justiça e a repressão aos grupos de reivindicação.

No núcleo da política internacional, que objetiva o alinhamento incondicional aos Estados Unidos, observamos figuras das mais anedóticas e autoritárias, como Ernesto Araújo e Eduardo Bolsonaro; este o chanceler de fato. Estão empenhados em colocar o Brasil submisso aos interesses do capital internacional especulativo.

No âmbito da cultura, a guerra – que congrega vários atores dos núcleos acima mencionados  -, é atuar em relação a valores, crenças, religião, implantando um estado obscurantista, em associação com os neopentecostais evangélicos e católicos.

Aqui, entra o enfrentamento à educação: essa pseudoguerra da doutrinação ideológica, que inclui o projeto fascista intitulado “escola sem partido”; a tal “ideologia de gênero”; o revisionismo da ditadura; a vigilância de professores; a reinserção nos currículos da disciplina “moral e cívica”; a inquisitória “lava-jato da educação” e sandices diversionistas, como o criacionismo e o  terraplanismo.

Como se não bastasse, utilizam estratégias de uma guerra semiótica e híbrida, via redes sociais – esse circo de misérias e horrores que move verdadeiros zumbis, incapazes de utilizarem a razão e o bom senso.

Saímos de governos que historicamente foram coniventes ou pouco efetivos com a violência estrutural para um necrogoverno: um governo que mata e destrói.

É só destruição e morte.

Não se trata da redução do Estado ao mínimo; mas sua quase eliminação. Inclusive com a criminalização dos servidores, o corte de cargos, a proibição de concursos públicos e a desconcentração de competências da União.

Um governo que aposta no esgarçamento total do Estado e do tecido social e no estímulo ao hiper-individualismo, como corolários do autoritarismo ultraliberal.

Bolsonaro e seu clã agem como uma espécie de “agitadores fascistas”: demandam adesão ideológica das massas, num jogo entre ameaçadores versus ameaçados a justificar uma cruzada moralista, autoritária e religiosa contra os valores e os direitos humanos.

Radicalizam a raiz da brutalidade constitutiva da sociedade brasileira (a violência estrutural), expressas na violência da virilidade patriarcal, no autoritarismo da caserna e da justiça e no nosso cinismo de nascença. Tudo como se fosse um jogo onde a violência e o gracejo se misturam com a brutalidade sanguinária, a rigidez do militarismo, o moralismo religioso e os desejos pervertidos da construção de uma sociedade governada por “homens puros e de bem”.

É preciso registrar que o governo Bolsonaro surge, também, como uma ameaça totalitária. Além de Bolsonaro personificar, em certa medida, os estereótipos de um ditador populista, o mais preocupante é que o núcleo do totalitarismo está nas instituições sociais e políticas quando (elas) se tornam homogêneas. E o alinhamento, mesmo que pontual, dos poderes da República (Congresso e STF) a ideais autoritários do presidente de plantão podem indicar essa tenebrosa perspectiva.

No governo Bolsonaro instala-se o ultraliberalismo combinado com o autoritarismo (de caserna e religioso) que são formas contemporâneas do totalitarismo. Trata-se de um necrogoverno.

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