Teoricamente, toda a geração pode ser considerada de transição, o que nisso tem boa dose de razão. Mas o final do século XX e início do XXI confere nova velocidade ao processo histórico, fazendo com que a transição se torne quase que visível a olho nu. Um organismo vivo e palpável! É como se estivéssemos caminhando aos pulos.
Pe. Alfredo J. Gonçalves
Desnecessário acrescentar que a revolução da informática contribui poderosamente para essa sensação do tempo escorrendo por entre os dedos. As rédeas de controle como que escaparam das mãos humanas, deslocando-se para o progresso técnico levado à máxima potência, como fim em si mesmo. Disso decorre a grande enfermidade de nossa época: angústia, ansiedade, depressão e outras males congêneres. Crises e culpas, cruzes e penas, medos e dúvidas, feridas e cicatrizes, tudo acompanhado de inquietações e de perguntas sem resposta, constituem patologias do nosso cotidiano. Sombras e fantasmas rondam noites insones e dias atormentados. Transição equivale a uma espécie de ponde pênsil, sobre a qual são normais, mas sempre temidas, as vertigens da travessia.
Para educadores e mestres, psicólogos e psiquiatras, líderes religiosos e pais de família, entre outras autoridades, uma interrogação se impõe: como acompanhar com uma geração que ainda não se despiu completamente do tabu de que “tudo é proibido”, mas, contemporaneamente, já saboreia a aurora de que “tudo é permitido”? Em outras palavras, como lidar com jovens e adolescentes que deixam paulatinamente as atitudes puritanas, deslizando com inusitada frequência e rapidez para um comportamento permissivo? No esquema pendular em que oscila a existência pessoal e a história da humanidade, como conciliar (para não dizer ignorar, neutralizar ou escapar) aos dois extremos que, nestes tempos pós-modernos, se tocam e se mesclam, se fundem e confundem, entrelaçando-se o tempo todo, gerando ambiguidades e incertezas de difícil administração?
Onde foram parar, se é que ainda existem, as fronteiras entre o certo e o errado? As antigas verdades parecem ter derretido de uma hora para outra sem que nos déssemos conta. Em seu lugar, surgiram as hipóteses, as opiniões ou as narrativas. Isso para sequer falar das falsas notícias, ou fake news, já que o fetiche do inglês nos persegue por todos os lados. “A cultura que nos condicionava está a estalar por todos os lados e não sabemos ainda como será o futuro. O Fernando Pessoa dizia: ‘Jaz aqui, na fria praia extrema, o capitão do fim’. É isso, somos pessoas do fim com a inquietação do futuro e a vida destas poucas pessoas não é fácil” (personagem de BAPTISTA, A. Alçada, in Os nós e os laços, Editorial Nórdica Ltda., Rio de Janeiro-RJ, pág. 252). A cultura pós-moderna, se assim podemos nos exprimir, praticamente retirou da família o dever e o direito de impor limites às crianças. Que outra ou outras instituições podem assumir semelhante encargo? No fim da linha, não raro sobra para as forças da ordem, a polícia, mas então já é demasiado tarde!
No espectro que vai de um extremo a outro entre a rigidez absoluta e o laxismo irresponsável, o terreno foi se tornando minado, movediço, escorregadio e cheio de ameaças e armadilhas. Avenidas largas e profusamente iluminadas podem conduzir a lugares obscuros; e inversamente, caminhos estreitos e íngremes descortinam, não raro, horizontes inovadores e de grande abertura. Como discernir a estrada certa dos atalhos espinhentos, os labirintos enganosos dos becos sem saída, os apelos estridentes das escolhas éticas e sábias? Perderam-se as referências das gerações passadas, sem que novos pontos fixos se tenham desenvolvido. Referências que, a bem dizer, eram também prisões de cômoda segurança. Raízes arrancadas, mas ainda não transplantadas, perigosamente expostas ao sol, que tanto pode reavivá-las quanto fazê-las definhar, secar e morrer. Não é à toa que nestes tempos de transição, costuma aumentar os números, rostos e rotas dos migrantes, também eles divididos fragmentariamente entre o resgate das origens e o sonho de voar. Raízes ou asas, o que escolher na dura travessia de mares e desertos, florestas, abismos e fronteiras?!…
Na feliz metáfora de Zygmunt Bauman, tudo que oferecia determinado apoio sólido converteu-se na “modernidade ou pós-modernidade líquida”. Laços, amores, amizades, intimidades familiares, compromissos, relações duráveis – tudo parece liquidificar-se. Em lugar disso, ganha força o que é efêmero, temporário, fugaz, passageiro. A longa experiência e o laborioso aprendizado tendem a ser substituídos pela via mais curta do experimento com prazo de validade. Alinhavamos, cancelamos e descartamos os fios que costuram o tecido social das relações com a velocidade de um toque na tecla do computador ou do celular. Ao convívio plural e mais exigente, sobrepõe-se o individualismo egocêntrico e imediatista. “O medo à liberdade”, para usar a expressão de Erich Fromm, torna-nos saudosistas de um berço infantil, sim, mas revestido de mimos e, simultaneamente, temerosos de cruzar essa ponte que requer ao mesmo tempo liberdade, maturidade e reponsabilidade.
Parafraseando Simone de Beauvoir, diríamos que as estrelas se apagaram nos céus, os marcos despareceram da estrada e o chão desapareceu debaixo dos pés. Se por um lado sentimo-nos aliviados de um peso que nos foi tirado de sobre os ombros, por outro parece que um abismo se abriu diante de nossos olhos. É nítida a sensação de que o próximo passo pode ser fatal, irreversível! A prática dos campos de batalha, por sua vez, traz-nos duas lições que passam a fazer parte do nosso dia-a-dia: em campo minado, não se caminha em linha reta; e muito menos às carreiras. Entre a prática educadora negativa do “não”, por uma parte, e a prática educadora positiva do “sim”, por outra, onde estão os limites? Do proibido ao permitido, como discernir as escalas que podem nos elevar aos céus ou nos afundar nos infernos do sofrimento humano?
E tem mais, períodos de ascendência ou decadência civilizatória costumam abrir brechas para oportunidades e oportunismos. Em meio a conceitos como crise ou euforia, caos ou barbárie, declínio ou progresso, o que vem a ser oportunidade e o que acaba degenerando para o oportunismo? São os momentos em que nossas frágeis embarcações parecem perder, ao mesmo tempo, a bússola, o timão, a âncora, o foral e consequentemente o porto sólido e seguro, a terra firme onde enfim repousar. No olho turvo e enfurecido da tormenta, para onde navegar? Em que direção orientar leme, rota e rumo? Como superar ondas que a todos ameaçam submergir? Voltando ao tema da transição, como encontrar pontos de apoio para firmar os pés e retomar alguns passos, ainda que tímidos e incipientes, para chegar ao outro lado da ponte? Se a resposta é difícil para marinheiros com larga experiência de mares bravios, que dizer dos que acabam de entrar nas águas tempestuosas da vida! O desafio da vertigem está sempre suspenso sobre o abismo da liberdade e da travessia.