Espiritualidade sem fogo de artifício

O itinerário de uma espiritualidade sólida e robusta costuma passar pelo deserto e pela noite escura. Na
imensidão das areias inóspitas, depara-se com oásis que pontilham as curvas e as ladeiras íngremes da
travessia.

Por: Pe. Alfredo J. Gonçalves

Na escuridão noturna, vislumbra luzes fugidias, mas eternas que, vez por vez, iluminam as
trevas que a vida nos reserva. São raros os momentos de longo e largo entusiasmo ou de sensações
transbordantes. Menos ainda o contentamento festivo e eufórico, regado a lágrimas de emoção.
Em termos de trajetória mística, navegar nas ondas do sucesso tende, em contrapartida, a cair nos
declives do fracasso. Emoções, sentimentalismos e lágrimas rapidamente se extinguem, deixando um
gosto amargo de vazio e tédio.

O fogo de artifício sobe e explode em cores e desenhos vivos e vibrantes,
mas logo se apaga, se reduz a cinzas, e retorna ao solo com a rapidez com que se levantou. Para quem
surfa nas ondas aparentemente alegres do entusiasmo, cedo ou tarde, será fatal encalhar na areia
movediça da tristeza e da angústia, do desespero e da depressão.


Pavimentar a estrada da espiritualidade, definitivamente, nada tem a ver com a fácil ideia da “varinha
mágica”. Esta tornou-se uma espécie de “abre-te sésamo” não somente no universo fictício de Harry
Potter, mas também nos shoppings centers do mundo moderno e pós-moderno. Um ícone da sociedade
rumorosa, apelativa e estridente. Hoje, tudo e todos parecem ao alcance da mão e do desejo insaciável.


A tecnologia de ponta, o progresso crescente e multicolorido, a realidade virtual e a noção de liberdade
sem freios – tudo isso combinado confere um poder ilusório e sem limites onde nada é interditado.
Num percurso espiritual sério e profundo, acabamos “tropeçando” com um mistério divino ao mesmo
tempo oculto e desconhecido.

A “varinha mágica” deixa de funcionar. Um rosto incógnito e invisível não
há como manipular, nem dispor a seu bel prazer. Descobrimos então que estamos diante de um Deus
que não vem modificar nossos desafios e problemas, nem os resolver; o que a oração mental pode e
deve modificar é nossa atitude diante das vicissitudes e adversidades cotidianas.


Também não é um Deus que venha em nosso socorro, pronto a arrancar-nos do fundo do poço nas
situações-limite da existência. Quando muito, sua luz e oásis nos ajudam a enxergar o entorno em que
nos movemos, para verificar que podemos, sim, contar com alguém que nos estenda a mão. Tampouco
se trata de um poder divino que estende um tapete por onde caminhamos para evitar eventuais quedas
e feridas. O dom de liberdade que d’Ele recebemos permite-nos decidir, por conta própria, pela salvação
ou pela condenação, pelo sim à vida ou à morte.


O percurso da intimidade com Deus é lento e laborioso: em lugar de uma “varinha mágica” e do mérito
pessoal, o que nos guia é a fé e a confiança incondicionais. O tempo também é outro: não o do relógio e
da pressa, mas o do coração sereno, sábio e esperançoso. Minutos, horas e dias de deserto podem nos
revelar, num vislumbre de um segundo, um oásis aconchegante para o repouso que revigora. Noites e
noites de trevas tendem a acender, com a instantaneidade de um relâmpago, uma pequena e tênue
chama, mas de um esplendor incomensuráveis. Calor que ilumina sem queimar.


De poço em poço, de luz em luz, pavimenta-se a estrada que nos leva à nascente de água viva. Melhor
conhecer o caminho da fonte que receber um ocasional copo de água. Tais jardins apenas entrevistos
em meio às areias do deserto, bem como esses raios fugazes, mas de uma luminosidade incomparável,
conservam viva e cálida a memória. Mesmo quando ausentes, conferem luz e energia para seguir a via.
Apesar das nuvens, o sol brilha acima delas. Basta pensar no “século de ouro” do misticismo espanhol,
com Inácio de Loyola (1491-1556), Teresa d’Ávila (1515-1582) e João da Cruz (1542-1591).


Nisso consiste uma real espiritualidade. Contempla não a falsa euforia ou fogo o fátuo, de palha, nem o
espetáculo cheio de luz e cor, porém, a encruzilhada áspera, mas que esconde um abrigo seguro contra
tormentas e tempestades. Contempla não apenas dias permanentemente ensolarados, mas sobretudo
trevas densas e sombrias, em meio às quais, entretanto, quanto maior a escuridão, tanto mais forte será
o brilho da face oculta e resplandecente de Deus. Na noite escura ou deserto, a presença de Alguém se
torna bálsamo e sustento em meio às intempéries da travessia.


Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM – São Paulo, 5 de novembro de 2021

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