Francisco, um chamado inquietador

“Como pode haver tanta injustiça, tanto luxo, ao lado de tanta pobreza?”  A pergunta é atribuída a Francisco de Assis ao se deparar com um cenário de mendicância no retorno para casa, de acordo com a biblioteconomista e professora Dilva Frazão, autora de um texto biográfico do santo, publicado em 2019.

Por:  Ivânia Vieira¹

Nas diferentes passagens da vida de Francisco existem significados e atualidades tão necessárias no mundo conflituoso e marcadamente violento como o é o de hoje. Um santo do amor, da esperança e da ação permanente em defesa dos mais vulneráveis, dos famintos, dos renegados pelos detentores do poder e pelos grupos sociais mais abastados.

Francisco não se dedicava apenas aos humanos. O amor nele encarnado alcançava animais e plantas, o cosmo, numa entrega completa e firme, difícil de ser compreendida na atualidade, imaginemos os impactos provocados por essas condutas na Idade Média, no Séc. XIII.

O historiador José D’Assunção Barros (2011), afirma que o Franciscanismo apresenta uma diversidade interna que precisa ser compreendida. Realça o primeiro e incontestável traço de unidade do Franciscanismo como um todo: um movimento que impactou profundamente aquela época, surgindo no seio de uma grande vaga de propostas de novas formas de religiosidade, algumas no âmbito da própria Reforma da Igreja Medieval; outras no âmbito de um movimento laico que ansiava por viver uma vida realmente apostólica; e outras ainda dentro de um quadro de movimentos que seriam logo classificados como heréticos.

{…}  o Franciscanismo surge como um inquietante sopro renovador frente à Igreja de seu tempo, e também diante de outros movimentos que começavam a expressar novas formas de religiosidade ou fortes interesses em reformar antigas práticas religiosas. No Brasil sincretizado, Francisco de Assis também é Xangô, o rei da justiça, senhor dos raios, do trovão e do fogo.

A Igreja destinada a acolher os pobres e os desvalidos ganhava endereço em Francisco, feito árvore frondosa com galhos espalhados em terras áridas. O santo que no dia 4 de outubro é reverenciado permanece como um livro aberto, com muitas páginas para serem escritas a partir de diferentes lugares do mundo.

É a partir de um cantinho da Amazônia que nasce este texto fruto da inquietação produzida pelas leituras sobre Francisco, ao olhar para a Igreja desenhada pelo peregrino do amor e igrejas de hoje, várias delas tão distantes desse desenho esculpido pelo Franciscanismo; e, ainda, pela ligação intrínseca do ser Francisco com o modo de ser Amazônia no perspectivismo dos povos originários.

É na conexão com a Natureza amazônica diversa e plural que podemos compreender um pouco mais das cosmologias dos povos amazônico. Compreender quando Pe. Justino afirma, ao ouvir o trovão, que é o avô dele se manifestando. Ou nas relações vitais desses povos com a Terra, as árvores, a água, o sol, a lua…

Do escrito de Dilva Frazão recorto outras duas passagens. Uma, a que conta a missão dada por Deus a Francisco, em 1206, quando orava na capela de São Damião, em Assis: “Vá, Francisco, e restaure a Minha Casa!”. Sim, Francisco, nossa Casa Comum pede socorro e cuidados e a outra casa, a Igreja, igualmente requer tratamento para melhor viver os ensinamentos de Cristo.

A outra passagem é a que remete a Francisco na floresta: “em sua presença, os peixes saltavam da água e os pássaros pousavam em seus ombros”. Francisco de Assis e da Amazônia apresenta um caminho, abriga uma proposta aos aflitos do Séc. XXI. Ter a coragem de vivê-la é deixar-se enlouquecer na essência de ser irmã e irmão de humanos e não humanos. É ouvir a voz delas e deles e aceitar seguir, junt@s, no combate à destruição do meio ambiente, à fome, aos autoritarismos da modernidade e, na fraternidade, alimentar a alma para seguir na construção do bem-viver.

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¹Jornalista, Membro do Fórum de Mulheres Afro-Ameríndias e Caribenhas (FMAC), da Frente Amazônica de Mobilização em Defesa dos Direitos Indígenas (FAMDDI), Profª Associada I da Universidade Federal do Amazonas (Ufam).

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