Por ocasião do “Dia Nacional dos Cristãos Leigos e Leigas”, na Solenidade de Cristo Rei/2019, escrevi o texto “Identidade do Cristão Leigo e Leiga, verdadeiramente sujeito eclesial” (parte I). Nessa primeira parte tratamos da “Identidade do cristão leigo e leiga”, refletindo sobre o Batismo, fonte de nossa identidade cristã, que nos incorpora a Cristo e nos faz partícipes de seu múnus sacerdotal, profético e real.
Nessa segunda parte, vamos abordar o protagonismo do cristão leigo e leiga na Igreja da América Latina e Caribe, através de suas Conferências Episcopais, chamados para uma ‘Igreja em saída’.
Por: Marilza Schuina
Em tempos de pandemia, do cuidado com a vida do outro e da outra, do cuidado com a vida do e no planeta, no cosmos, no universo, vamos à leitura.
A vocação e missão dos cristãos leigos e leigas: do Concílio Vaticano II às Conferências Episcopais Latino-americanas
O Concílio Ecumênico Vaticano II, esse “novo Pentecostes” da Igreja continua vivo e valorizando a vocação e missão dos cristãos leigos e leigas, compreendendo-o plenamente Igreja e não como um fiel de segunda categoria ou de pertença menor ou inferior.
“O Concílio Vaticano II definiu toda a Igreja como missionária, mas para tanto, após apurado discernimento, avanço teológico e resgate de riquezas da tradição bíblica e patrística, muda e/ou amplia a concepção que esta tem de si mesma, buscando a sua origem no mistério divino (cap. I da Lumen gentium) e reafirmando a sua índole escatológica (cf. LG 48). A Igreja é um povo que peregrina (capítulo II da Lumen gentium), e esse peregrinar acontece na experiência do Cristo Pascal, que como ressuscitado-crucificado antecipa-nos a glória futura, mas que nos aponta o caminho de um Reino a ser trilhado e buscado dentro deste mundo, em cada realidade, onde se vive e se experimentam as dores, alegrias, angústias e esperanças. Aquilo que o mundo sente, diz o Concílio na Gaudium et spes (GS 1), a Igreja também sente, e é desta forma, que ela se faz missionária, na totalidade do mistério que a envolve e na totalidade humana que a confere como Povo de Deus, um povo peregrino. Assim, a Igreja se fará missionária não no enfrentamento, mas no diálogo; não na afirmação de uma autoreferencialidade passada, mas num aggiornamento, numa experiência nova que a coloque para frente” (Kuzma, Pré- Congresso de Leigos CONE SUL, maio de 2017).
O Vaticano II supera a imagem de leigo visto como aquele que não sabe, aquele que não é, aquele que precisa ser levado a, conduzido a, apresentando-o, como já vimos anteriormente, uma visão positiva, reafirmando a sua plena incorporação à Igreja e seu mistério.
O Concílio fundamentou toda a Igreja nas missões de Cristo e do Espírito, pois é o Espírito que capacita todas as pessoas batizadas para participarem na obra de Cristo oferecendo usas vidas como sacrifício espiritual, a escutarem e proclamarem a Palavra e trabalharem pela vinda do Reino de Deus (cf. LG, 31).
“Desta forma e nesta nova concepção, os cristãos-leigos são compreendidos (e inseridos) na missão de toda a Igreja com uma especificidade que lhes é própria e que lhes permite atuar em questões internas da Igreja e/ou em questões externas, em todas as realidades que se encontram, sem exclusivismos. Com o Concílio Vaticano II eles são os batizados incorporados a Cristo e, por essa razão, membros do Povo de Deus e assumem a sua vocação a partir do múnus sacerdotal, profético e régio (cf. LG 31a). Também pelo Concílio, os cristãos-leigos são aqueles e aquelas que estão no mundo – é o especial de sua vocação – e, por isso, atuam como fermento na massa, sementes da boa nova, transformando estruturas na ótica do Reino de Deus (cf. LG 31b)”. (Kuzma, Pré- Congresso de Leigos CONE SUL, maio de 2017).
Assim, “embora sendo muitos, somos um só corpo em Cristo, e individualmente somos membros uns dos outros” (Rm 12,5). Somos Igreja!
As Conferências Episcopais Latino-americanas seguem as pegadas do Concílio Vaticano II e apresentam uma visão de leigo e leiga construtores do Reino.
A Conferência de Medellín (1968), assume as diretrizes do Vaticano II e situa o laicato conforme a realidade pobre do Continente latino-americano norteando para uma missão do laicato tendo em vista a sua realidade temporal: ser testemunho de pobreza, ser santo num continente pobre. (14-17/ 12,1). Fala sobre o acompanhamento aos fiéis leigos que participam em atividades políticas em coerência com seu compromisso cristão e transformar a sociedade sendo sinal de libertação, humanização e desenvolvimento.
A conferência de Puebla (1979), resgata os avanços trazidos pelo Concílio Vaticano II e por Medellín. Sobre o laicato, toma por base a participação dos leigos e leigas na Igreja e no Mundo: “o leigo, a leiga, é o coração do mundo na Igreja e o coração da Igreja no mundo”.
Enfatiza: os ministérios leigos, e alerta sobre os perigos da clericalização, do abuso de poder, da evasão de responsabilidades temporais por servir à Igreja (815); a missão do leigo, no mundo, lembrando que é a mesma missão da Igreja; fala da opção preferencial pelos pobres; o reconhecimento de culpa na marginalização da mulher e o compromisso de sua libertação, (839) solicitação de sua incorporação nas atividades pastorais em igualdade de condição (845); a organização do laicato – para uma organização nacional e diocesana e participação na vida pastoral da Igreja (829) pede para que se organizem centros de formação de leigos, estruturados e dinamizados por eles mesmos (832) e solicita que a hierarquia motive e estimule os diferentes ministérios leigos (833).
A Conferência de Santo Domingo (1992) também reflete sobre os cristãos-leigos na Igreja e no mundo chamando a atenção para que sejam protagonistas da nova evangelização para expansão do Reino. “Eles são chamados por Cristo como Igreja, agentes e destinatários da Boa-Nova da salvação, a exercer no mundo, vinha de Deus, uma tarefa evangelizadora indispensável” (SD n. 94). “Ide também vós para a minha vinha” (Mt 20,3-4) e, “Ide por todo o mundo” (Mc 16,15) (cf. SD n. 94). Traz as mesmas problemáticas do Vaticano II e de Medellín no qual foram colocados os perigos de clericalização do leigo na vida da Igreja, que impede a sua verdadeira vocação. Os ministérios não devem ser exclusivos para os leigos, o mundo espera seu testemunho.
A Conferência de Aparecida (2007), fala da vocação dos “fiéis leigos e leigas, discípulos e missionários de Jesus, Luz do Mundo” (cf. DAp, 209ss) e apresenta os cristãos leigos e leigas como verdadeiros sujeitos eclesiais (n. 496a), sem os quais a Evangelização da América Latina e Caribe não pode se realizar, pois estes deverão ser parte ativa e criativa dos projetos pastorais (cf. DAp, 211, 213).
Alguns pontos importantes da Conferência são: que a ação eclesial seja organizada de maneira que ajude a desenvolver em cada mulher e nos âmbitos eclesiais e sociais o “gênio feminino”, que promova o mais amplo protagonismo das mulheres (DAp, 458a) ; que se promovam caminhos eclesiais mais efetivos com a preparação e compromisso dos leigos para intervir nos assuntos sociais (cf. DAP, 491ss); que os leigos e leigas sejam chamados à responsabilidade de se fazerem presentes na vida pública e na busca da consolidação da justiça em nossa sociedade (cf. DAp, 506ss); a coerência entre fé e vida no âmbito político, econômico e social exige a formação da consciência que se traduz em conhecimento da Doutrina Social da Igreja (cf. DAp, 212); que os leigos e leigas estejam presentes nas equipes de formação, pois a partir de suas experiências e competências, oferecem conteúdo e testemunho valiosos para os que estão se formando (DAp, 281); devem ser reconhecidos o valor e a eficiência dos conselhos paroquiais, conselhos diocesanos e nacionais de fiéis leigos e leigas porque incentivam a comunhão e a participação na Igreja e sua presença ativa no mundo, pois a construção da cidadania e da eclesialidade são um só e único movimento (cf. DAp, 215).
Leigos e leigas, sujeitos na Igreja e Sociedade, chamados a uma “Igreja em saída”.
Como vimos anteriormente, a Conferência de Aparecida apresenta o cristão leigo e leiga como “verdadeiro sujeito eclesial” (DAp, n. 497a). O cristão leigo e leiga como sujeito eclesial é aquele que é enviado e tem clareza de sua identidade, vocação, espiritualidade e missão, “corresponsável do ser e do agir da Igreja.”
O cristão leigo é verdadeiro sujeito eclesial mediante sua dignidade de batizado, vivendo fielmente sua condição de filho de Deus na fé, aberto ao diálogo, à colaboração e à corresponsabilidade com os pastores. Como sujeito eclesial assume seus direitos e deveres na Igreja, sem cair no fechamento ou na indiferença, sem submissão servil nem contestação ideológica. Ser sujeito eclesial significa ser maduro na fé, testemunhar amor à Igreja, servir os irmãos e irmãs, permanecer no seguimento de Jesus, na escuta obediente à inspiração do Espírito Santo e ter coragem, criatividade e ousadia para dar testemunho de Cristo (CNBB, Doc. 105, 2016, p.69).
Como sujeito eclesial, o cristão leigo e leiga participa na ação pastoral da Igreja, nas Comunidades Eclesiais de Base, nas pastorais, movimentos e serviços, nos conselhos pastoral e econômicos, nas assembleias e reuniões.
É importante ressaltar o cristão leigo e leiga, sujeito da ação eclesial e social, ou seja, o laicato, consciente de sua vocação, vai se constituindo sujeito nas atividades no interno da Igreja e no tecido humano da sociedade, porque como sujeito a pessoa será ela mesma, com todas as suas potencialidades, construída e construtora na convivência com os demais. Incorporados a Cristo, como bem define o Concílio Ecumênico Vaticano II, os leigos e leigas constituem-se povo de Deus profético, sacerdotal e real.
Queremos enfatizar a índole secular que caracteriza seu ser e agir, como propõe o Concílio Vaticano II: “O caráter secular caracteriza os leigos. (…) A vocação própria dos leigos é administrar e ordenar as coisas temporais, em busca do Reino de Deus. Vivem, pois, no mundo, isto é, em todas as profissões e trabalhos, nas condições comuns da vida familiar e social, que constituem a trama da existência. São aí chamados por Deus, como leigos, a viver segundo o espírito do Evangelho, como fermento de santificação no seio do mundo, brilhando em sua própria vida pelo testemunho da fé, da esperança e do amor, de maneira a manifestar Cristo a todos os homens. Compete-lhes, pois, de modo especial, iluminar e organizar as coisas temporais a que estão vinculados, para que elas se orientem por Cristo e se desenvolvam em louvor do Criador e do Redentor. (CNBB, Doc. 105, 2016, p.16).
Dessa forma, estamos falando de alguém que, como homens e mulheres, estão no mundo e agem nas diferentes realidades, “na defesa do trabalho digno, na eliminação do trabalho escravo, do tráfico humano, da violência contra as mulheres e da exploração infantil, na defesa da demarcação das terras indígenas e dos territórios quilombolas, e em tantas outras lutas” (CNBB 105, n.34).
O campo próprio da sua atividade evangelizadora é o mesmo mundo vasto e complicado da política, da realidade social e da economia, como também o da cultura, das ciências e das artes, da vida internacional, dos meios de comunicação e, ainda, outras realidades abertas para a evangelização, como seja o amor, a família, a educação das crianças e dos adolescentes, o trabalho profissional e o sofrimento. Quanto mais leigos houver impregnados do Evangelho, responsáveis em relação a tais realidades e comprometidos claramente nas mesmas, competentes para as promover e conscientes de que é necessário para desabrochar a sua capacidade cristã muitas vezes escondida e asfixiada, tanto mais essas realidades, sem nada perder ou sacrificar do próprio coeficiente humano, mas patenteando uma dimensão transcendente para o além, não raro desconhecida, se virão a encontrar a serviço da edificação do reino de Deus e, por conseguinte, da salvação em Jesus Cristo. (EN, n. 70)
Nesse contexto, os leigos e leigas procuram responder ao chamado de Cristo e da Igreja, ao apelo que o Papa Francisco lança a toda a Igreja: “Uma Igreja em saída” (Evangelii Gaudium).
… hoje todos somos chamados a esta nova “saída” missionária. Cada cristão e cada comunidade há de discernir qual é o caminho que o Senhor lhe pede, mas todos somos convidados a aceitar esta chamada: sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias que precisam da luz do Evangelho. (20) . A alegria do Evangelho, que enche a vida da comunidade dos discípulos, é uma alegria missionária. (…) Esta alegria é um sinal de que o Evangelho foi anunciado e está a frutificar. Mas contêm sempre a dinâmica do êxodo e do dom, de sair de si mesmo, de caminhar e de semear sempre de novo, sempre mais além. O Senhor diz: “vamos a outros lugares, vamos nas aldeias da redondeza, a fim de que, lá também, eu proclame a Boa Nova. Pois foi para isso que eu saí” (Mc 1, 38). (21)
Sem exclusão, a alegria do Evangelho deve ser anunciada a todos os povos, numa Igreja “em saída”, que toma a iniciativa sem medo de ir ao encontro dos afastados e excluídos.
A Igreja “em saída” é a comunidade dos discípulos missionários que “primeireiam”, que se envolvem, que acompanham, que frutificam e festejam. (…) Ousemos um pouco mais no tomar a iniciativa! Como consequência, a Igreja sabe “envolver-se”. Jesus lavou os pés de seus discípulos. O Senhor envolve-Se e envolve os seus, pondo-Se de joelhos diante dos outros para lavá-los; mas, logo a seguir, diz aos discípulos: “Sereis felizes se o puserdes em prática” (Jo 13, 17). Com obras e gestos, a comunidade missionária entra na vida diária dos outros, encurta as distâncias, abaixa-se – se for necessário – até à humilhação e assume a vida humana, tocando a carne sofredora de Cristo no povo. (24)
De portas abertas às necessidades do mundo, a Igreja se faz, eminentemente, no caminho, “uma mãe de coração aberto”, Igreja missionária, chamada a ser comunidade de discípulos missionários de Jesus Cristo.
Nesse sentido, como já mencionado nesse texto, a teologia do Batismo e a teologia da Igreja Povo de Deus emanadas do Concílio Vaticano II possibilitam uma maravilhosa teologia do laicato, procurando responder ao grande desafio de compreender a Igreja “em saída”, aberta ao mundo, inserida no mundo e servidora ao mundo.
“A Igreja está no mundo para servi-lo e no serviço transformá-lo; ela não está no mundo para conquistá-lo e nem para fazer com que as pessoas se tornem mais cristãs e católicas. Seria um equívoco. A missão do Povo de Deus é continuar a ação do Cristo na prática do Reino e no alimento da esperança a partir Daquele que é a razão da esperança, Cristo. Mas sempre num aspecto propositivo, no testemunho, servindo, aprendendo e ensinando, sentando-se a mesa, partindo o mesmo pão, acolhendo o diferente e vivendo com ele” (Kuzma, Pré-Congresso de Leigo – CONE SUL, maio de 2017).
Identidade e missão dos leigos e leigas caminham juntas. Os leigos e leigas estão nas ações pastorais e nas ações sociais, nos movimentos eclesiais e nos movimentos sociais e populares, estão nas comunidades eclesiais onde buscam o alimento que sustenta na caminhada e estão no mundo, no campo e na cidade, nas mais diversas atividades, nos mais diversos espaços do campo político, econômico, social, científico, cultural, educacional, etc.
Os leigos exercem o seu multíplice apostolado tanto na Igreja como no mundo. Numa e noutra dessas ordens, se abrem vários campos de atuação apostólica. (…) São os seguintes: as comunidades da Igreja, a família, os jovens, o ambiente social e a ordem nacional e internacional. (AA, n.9) São homens e mulheres, novos e velhos, crianças e jovens, “são o perfume de Cristo, o fermento do Reino, a glória do Evangelho” (CNBB 105, n.35).
Bibliografia:
- Concílio Vaticano (2: 1962-1965) – Documentos do Concílio Vaticano II, – São Paulo: Paulus, 2001. – (Clássicos de bolso)
- Conferência Nacional dos Bispos do Brasil/ Cristãos Leigos e Leigas na Igreja e na Sociedade – Sal da Terra e luz do Mundo (Mt 5, 13-14). Edições CNBB. 2016
- Conselho Nacional do Laicato do Brasil/ Agenda Formativa 2018. Publicação própria. Ano V. 2018.
- Lopes, Geraldo – Lumen Gentium, texto e comentário – São Paulo: Paulinas, 2011. – (Coleção revisitar o Concílio).
- Papa Francisco/Exortação Apostólica do Papa Francisco: Evangelii Gaudium – A Alegria do Evangelho. Edições da CNBB. 2013
- Paulo VI/ Exortação Apostólica do Sumo Pontífice Paulo VI: Evangelii Nuntiandi – A Evangelização no Mundo Contemporâneo. Paulinas. 22ª edição, 2011.
- Pontifícia Comissão para a América Latina/ O indispensável compromisso dos leigos na vida pública dos países latino-americanos – Recomendações pastorais – Reunião Plenária, de 1º a 4 de março de 2016 – Cidade do Vaticano. Brasília, Edições CNBB. 2016.
- Kuzma, César. Palestra – Francisco e o Laicato – Pré-Congresso de Leigos do Cone Sul/Buenos Aires, maio de 2017