Pois todos vocês são um só em Cristo Jesus (3,28d).

Estamos celebrando 50 anos do mês da Bíblia no Brasil. O mês da Bíblia surgiu na Arquidiocese de Belo Horizonte, por ocasião da celebração do seu jubileu. Surgiucomo uma resposta aos apelos da Igreja para ajudar o povo a ler e entender a Bíblia. Dom João Resende Costa queria fazer algo que marcasse a comemoração da Arquidiocese.

Por: Maria Antônia Marques

A partir de uma decisão pastoral, um padre foi designado para concretizar o mês da Bíblia e o arcebispo solicitou a colaboração das Irmãs Paulinas. As paulinas estão na origem do surgimento do mês bíblico e também foram responsáveis pela realização do mesmo por muitos anos. O projeto do mês da Bíblia cresceu e, aos poucos, tornou-se independente, sendo proposto para toda a Igreja do Brasil. Há diversos artigos que contam essa história e enfatizam um ou outro aspecto, sem conseguir esgotar a riqueza desse movimento dentro da Igreja.

A história registra apenas o nome de algumas lideranças, mas há milhares de mulheres e homens em toda a Igreja do Brasil e de outros países da América Latina que permanecerão no anonimato, mas que ajudaram a criar convicções da importância aproximar Bíblia e vida. Nessa caminhada, estamos todos nós, eu e você.

Cada ano é proposto o estudo, a reflexão e a oração de um texto bíblico, em sintonia com o tema da Campanha da Fraternidade. O livrobíblico deste ano é a carta de Paulo aos Gálatas, com o tema: “Pois todos vós sois um só em Cristo Jesus” (Gl 3,28d). Uma carta dirigida às igrejas da Galácia. Segundo Atos dos Apóstolos, Paulo visitou a Galácia em sua segunda e terceira viagens missionárias (At 16,6; 18,23), recebendo boa acolhida, mesmo estando doente: “Vocês sabem que foi por causa de uma doença física que lhes anunciei o evangelho pela primeira vez. E apesar de minha carne ter sido para vocês uma provação, vocês não me desprezaram nem rejeitaram. Pelo contrário, me receberam como a um anjo de Deus, como a Cristo Jesus” (Gl 4,13-14).

Paulo passou pela região da Galáciaentre os anos 48 e 50 e anunciou o evangelho de Jesus Cristo Crucificado. Alguns anos mais tarde, provavelmente em Éfeso[1], Paulo recebe notícias de que as  comunidades da Galácia estavam aderindo ao evangelho dos cristãos judaizantes, que insistiam na circuncisão e outras práticas da Lei. Além disso, o judaizantes acusavam Paulo de não ser apóstolo, por não pertencer ao grupo dos Doze.

A carta aos Gálatas, escrita após 53 e antes de 57, começa afirmando a identidade do remetente: “Paulo, apóstolo, não da parte dos homens, nem por meio de um homem, mas da parte de Jesus Cristo e de Deus Pai que o ressuscitou dentre os mortos” (Gl 1,1; cf. Gl 1,11-12). O tema da carta é o evangelho de Jesus Cristo Crucificado, “que se entregou a si mesmo pelos nossos pecados, para nos livrar do mundo mau em que estamos, conforme a vontade de Deus e nosso Pai” (Gl 1,4). É preciso entender que nesse contexto, pecado e mundo mau são as realidades de injustiça impostas pelo império romano e pelo legalismo do sinédrio.

Paulo insiste na justificação pela fé: “Mediante a Lei ninguém é justificado diante de Deus, porque o justo viverá pela fé; Pois em Cristo Jesus, nem a circuncisão nem a incircuncisão têm valor algum, e sim a fé que age através do amor” (Gl 3,11; 5,6). A carta aos Gálatas foi escrita no calor da emoção, como uma resposta de Paulo à confusão causada pelos pregadores judaizantes, por isso, ela retrata a discussão e a situação pelas quais as comunidades gálatas estavam passando e, ao mesmo tempo, descreve as características delas em relação a Paulo. Vejamos alguns pontos importantes:

  1. Os membros das comunidades gálatas eram gentios que só conheceram o Deus judeu e a mensagem de Jesus depois de sua conversão de vida (Gl 4,8-9; 5,2-3; 6,12).
  2. Comunidades de língua gálata: “Foi desenhada a imagem de Jesus Cristo crucificado” (Gl 3,1). Provavelmente, Paulo teve de recorrer a desenhos para se comunicar, trabalhando duramente, com muito amor e esforço (Gl4,11).
  3. As comunidades acolheram Paulo, um enfermo judeu, sem discriminação (Gl 4,13-14). O laço afetivo das comunidades com Paulo era tão forte que o fez declarar: “se fosse possível, vocês arrancariam os próprios olhos e os dariam a mim” (Gl 4,15).
  4. Paulo anunciara a “cruz de Jesus Cristo” (Gl 3,1) na qual a graça de Deus foi dada: “Não torno inútil a graça de Deus. Porque se a justiça vem através da Lei, então Cristo morreu inutilmente” (Gl 2,21). Por graça, os convertidos gálatas tornaram-se pessoas capazes de amar e de se pôr a serviço uns dos outros (Gl 5,13).
  5. No batismo, o evangelho de Jesus Cristo crucificado, com seu amor gratuito foi assumido pelos gentios pobres e sofridos como fonte de liberdade, irmandade e igualdade em um mundo escravagista (Gl 3,23-29).
  6. O ponto principal de discussão e de crise é “o outro evangelho”, que “distorce o evangelho de Cristo” (Gl 1,7). O grupo judaizante radical insiste: o seguidor e a seguidora de Jesus devem submeter-se à prática de todas as leis judaicas, como a circuncisão e as leis alimentares, para alcançar a salvação (Gl 2,11-21). Desta forma, o grupo agitador está pregando outro evangelho e levando as comunidades ao jugo da Lei, provocando segregação e desunião.
  7. Os convertidos gálatas estavam prestes a se submeter à Lei de Moisés (Gl 4,1) e a trair a amizade e a lealdade com Paulo, abandonando o verdadeiro evangelho (Gl 1,6). Diante disso, Paulo afirma: “Meus filhos, por vocês eu sofro de novo as dores de parto, até que Cristo se forme em vocês” (Gl4,19).
  8. Alguns membros, convertidos gálatas, se fizeram circuncidar (Gl 5,2-4) e exerciam pressões sobre os outros participantes das comunidades (Gl 6,13).
  9. Havia também o grupo helenizado, cujo o espírito era o da busca desenfreada de bens, poder e prazer, que transformou a liberdade em libertinagem, causando um problema ético e aumentando as tensões internas (Gl 5,13-24).   
  10. Os opositores chegaram a negar a autoridade de Paulo e o evangelho pregado por ele (Gl 1,1-5.7-10)
  11. Diante do conflito das comunidades”, Paulo, indignado e revoltado, escreveu: “Ó gálatas sem juízo! Quem foi que os enfeitiçou” (Gl 3,1); “Aqueles demonstram interesse por vocês, mas a intenção deles não é boa. Querem separá-los de mim, para que vocês se interessem por eles” (Gl 4,17). “Que se mutilem de uma vez aqueles que estão perturbando vocês!” (Gl 5,12).

Na carta aos Gálatas, Paulo defende o evangelho do amor gratuito de Deus, manifestado em Jesus Cristo Crucificado. Não é o cumprimento de normas e ritos que justifica uma pessoa, mas uma fé que age através do amor: “por meio do amor, ponham-se a serviço uns dos outros” (Gl 5,13). Paulo é judeu e reconhece o papel da Lei como pedagogo: “De modo que a Lei se tornou nosso pedagogo em direção a Cristo, para que fôssemos justificados pela fé” (Gl 3,24).

Esta carta foi escrita para o contexto de divisão das comunidades da Galácia. É uma carta que continua questionando o nosso seguimento a Jesus: a nossa vivência do evangelho é baseada na graça e no Espírito ou no cumprimento de normas e ritos? Vivemos como filha/o de Deus e acreditamos que todas as pessoas têm essa mesma dignidade? Como nós e nossas comunidades buscamos soluções para melhorar a vida de nossas irmãs e irmãs diante das crises que vivemos? Como lidamos com as propostas que contrariam a verdade do Evangelho?

Nós temos somente a carta que Paulo escreveu às igrejas da Galácia e a defesa apaixonada do Evangelho pregado por ele. Não sabemos como essa carta foi recebida pelas pessoas e nem qual era de fato a pregação dos adversários de Paulo. A sua insistência na justificação pela fé e na liberdade em Cristo nos faz acreditar que em Cristo somos livres.

Que o estudo, a reflexão e a oração a partir da carta aos Gálatas nos ajude em nossa vida cristã, especialmente na busca conjunta de soluções para as dificuldades vivenciadas em nossas comunidades. Que a vivência da irmandade e da solidariedade seja a marca do nosso discipulado.

Maria Antônia Marques

Assessora do Centro Bíblico Verbo

Professora no Instituto São Paulo de Estudos Superiores (ITESP)


[1] Alguns pesquisadores têm proposto as comunidades do sul da Galácia como os destinatários da carta aos Gálatas, datando a carta por volta do ano 50, de Corinto. Esta discussão continua em aberto. 

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