Desde o início do seu ministério como bispo de Roma, o papa Francisco tem provocado e convocado a Igreja a um processo de renovação/conversão pastoral em vista de uma maior fidelidade à sua missão evangelizadora no mundo (EG 19-49).
Por Francisco de Aquino Júnior
Sua Exortação Apostólica Evangelii Gaudium é um convite a uma “nova etapa evangelizadora” com indicação de “caminhos para o percurso da Igreja nos próximos anos” (EG 1). O Sínodo dos Bispos para a Região Pan-Amazônica (2019), a criação da Conferência Eclesial da Amazônia (2020), a Assembleia Eclesial da América Latina e do Caribe (2021) e o próximo Sínodo dos Bispos sobre sinodalidade (2023) são parte e expressão fecunda e eficaz desse processo de renovação eclesial em curso. Trata-se de um processo de renovação/conversão missionária-sinodal.
Renovação/conversão missionária
A “nova etapa evangelizadora” de que fala Francisco consiste fundamentalmente numa “transformação missionária da Igreja” (EG, cap. I). Ela existe para a missão. Ela é missionária por sua própria natureza (AG 2). E sua missão é a mesma de Jesus: “tornar o Reino de Deus presente no mundo” (EG 176). Esta é a eterna novidade da Igreja e toda renovação/reforma da Igreja deve se realizar a partir e em vista dessa missão.
Trata-se de um processo de descentramento eclesial (interesses institucionais) e de saída para as periferias do mundo (rostos concretos com dores, esperanças, lutas) para anunciar a Boa Notícia do reinado de Deus (manifestar a ternura de Deus, ungir as feridas, regar a esperança, cultivar a solidariedade, animar as lutas por direito). Francisco tem falado muito de uma “Igreja em saída para as periferias”. Não se trata de qualquer saída para qualquer lugar e para qualquer coisa. Trata-se de “sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias que precisam da luz do Evangelho” (EG 20). Ao falar de uma “Igreja em saída”, ele retoma o processo de renovação conciliar que fala da Igreja como “sacramento de salvação” ou “sinal e instrumento do Reino de Deus” no mundo (LG 1, 9, 48).
Ao falar de “saída para as periferias”, insiste no “lugar privilegiado dos pobres no povo de Deus” (EG 197-201) ou no que se convencionou chamar a partir da América Latina de “opção preferencial pelos pobres” (EG 198): uma “forma especial de primado da caridade cristã, testemunhada por toda a Tradição da Igreja” (João Paulo II) que está “implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós, para enriquecer-nos com sua pobreza” (Bento XVI). É nesse sentido que Francisco fala de uma “Igreja pobre para os pobres”, insistindo que “a nova evangelização é um convite a reconhecer a força salvífica dos pobres e a colocá-los no centro do caminho da Igreja” (EG 198). Este é o cerne da “transformação missionária da Igreja” de que fala Francisco. Trata-se de “voltar à fonte e recuperar o frescor original do Evangelho” (EG 11).
Renovação/conversão sinodal
A conversão missionária da Igreja diz respeito à totalidade do povo de Deus na diversidade de seus carismas e ministérios. Como ensina o Concílio Vaticano II, pelo batismo, todos os cristãos são “ungidos” com o Espirito Santo e dotados com um “senso da fé”, pelo qual “recebe a Palavra de Deus, penetra-a mais profundamente e mais plenamente a aplica na vida” (LG 12). Isso faz da Igreja uma comunidade, na qual “reina entre todos verdadeira igualdade quanto à dignidade e ação comum de todos os fiéis na edificação do Corpo de Cristo” (LG 32). E é nesse sentido que Francisco fala de sinodalidade ou Igreja sinodal: o “caminhar juntos” do Povo Santo de Deus na comum dignidade e missão (igualdade fundamental) e na riqueza e complementaridade de seus carismas e ministérios (diversidade carismático-ministerial).
O texto fundamental aqui é o discurso de Francisco por ocasião dos 50 anos de instituição do Sínodo dos Bispos no dia 17 de outubro de 2015 (disponível no site do Vaticano). Ele afirma que a sinodalidade é uma “dimensão constitutiva da Igreja” que “nada mais é que o ‘caminhar juntos’ do rebanho de Deus pelas sendas da história ao encontro de Cristo Senhor”. Recorda com o Concílio que o fundamento desse “caminhar juntos” é a “unção” do Espírito e o “senso sobrenatural da fé” que ela confere a todos os batizados. Insiste que em virtude dessa “unção” e desse “senso da fé” todo batizado é um “sujeito ativo da evangelização”, o que “impede uma rígida separação entre Igreja docente e Igreja discente”. Antes de qualquer diferença na Igreja, como ensina o Concílio, “reina entre todos verdadeira igualdade quanto à dignidade e ação comum” (LG 32). E isso, diz ele, “oferece-nos o quadro interpretativo mais apropriado para compreender o próprio ministério hierárquico” que deve ser um “serviço” ao Povo de Deus. Francisco reconhece que sinodalidade “é um conceito fácil de exprimir em palavras, mas não é assim fácil pô-lo em prática”.
E oferece algumas orientações para um processo sinodal: a) “uma Igreja sinodal é uma Igreja da escuta: cada um à escuta dos outros e todos à escuta do Espírito Santo”; b) “o caminho sinodal começa por escutar o povo […] continua escutando os pastores […] e culmina na escuta do bispo de Roma”; c) níveis de exercício da sinodalidade: Igrejas particulares, instancias intermediárias, Igreja universal; d) “numa Igreja sinodal, o Sínodo dos Bispos é apenas a manifestação mais evidente dum dinamismo de comunhão que inspira todas as decisões eclesiais”; e) “o compromisso de edificar uma Igreja sinodal está cheio de implicações ecumênicas” e é como “estandarte erguido entre as nações”. A criação da Conferência Eclesial da Amazônia (junho de 2020) e a realização da Assembleia Eclesial da América Latina e do Caribe (novembro de 2021), enquanto organismo e evento de toda a Igreja e não apenas dos bispos, avançam ainda mais na direção de uma Igreja verdadeiramente sinodal, na qual a totalidade do povo de Deus aparece como “sujeito” eclesial.
Renovação/conversão missionário-sinodal
Mas é preciso ficar muito atento para não banalizar ou distorcer o sentido profundo da missão e do dinamismo sinodal da Igreja. Toda insistência aqui é pouca. A missão da Igreja é “tornar o Reino de Deus presente no mundo” (EG 176). Isso significa que ela tem que se preocupar e se envolver com os problemas do mundo e fermentar a sociedade com a força e o dinamismo do Evangelho de Jesus Cristo. Por isso, Francisco tem falado tanto de “opção preferencial pelos pobres”, de “fraternidade e amizade social” e do “cuidado da casa comum”.
E a sinodalidade eclesial se dá precisamente nessa missão. Quando se perde isso de vista, termina em burocratismo, ativismo e disputa de poder. Falando dos organismos de participação na Igreja, Francisco adverte que “só na medida em que estes organismos permanecerem ligados a ‘baixo’ e partirem do povo, dos problemas do dia-a-dia, é que pode começar tomar forma uma Igreja sinodal”. É nesse sentido que falamos com Francisco de uma renovação missionária-sinodal da Igreja.
Fonte: portaldascebs.org.br