Em conferência no Muticom 2021, o pesquisador e professor Moisés Sbardelotto traduziu tese defendida por filósofo italiano para ambiente eclesial
Por: Cléo Nascimento
Foi-se o tempo em que nuvem era apenas a concentração de líquido em suspensão no ar, da mesma forma que navegar não se limita mais a conduzir ou viajar em embarcação aquática. Uma rápida busca das palavras no Google e vamos encontrar nos primeiros resultados ideias que mais parecem de um universo paralelo, muito embora, estejam simplesmente definindo termos usuais do meio digital.
E será mesmo que estes ambientes são tão desvinculados entre si? Para o pesquisador e doutor em Ciências da Comunicação, professor Moisés Sbardelotto, é preciso desmistificar o conceito do virtual, para que a realidade do digital não seja compreendida apenas como algo meramente fictício. Palestrante do Mutirão de Comunicação 2021, Sbardelotto defendeu que, mesmo no digital, existe uma concretude. Ou seja, em alguma etapa do seu processo de estruturação, há a necessidade do local ou objeto físico, tangível.
Por exemplo: para que bilhões de pessoas possam armazenar arquivos em “nuvem”, é necessária a existência de prédios que abriguem centros de organização e sistematização dessas informações. Para dar uma ideia, Sbardelotto trouxe os seguintes números: em 2012, existiam 500 mil data centers e, em 2019, um novo levantamento mostrou que já eram mais 8 milhões em todo mundo. O setor digital usa mais de 1% da eletricidade do planeta e é responsável por, pelo menos, 2,3% da emissão global de CO2, mais que a aviação, considerado um dos setores mais poluentes.
Outro caminho para visualizar o entrelace do real e virtual é o conhecimento. “O conhecimento presente numa biblioteca é virtual. Mas, se alguém toma posse de um livro, lê uma página e aprende algo, o conceito se atualiza para esse sujeito”, explicou o professor. Nesse sentido, podemos entender que a noção de virtual não é exclusiva do ambiente digital. A realidade manifesta virtualidades, tal como o inverso é verdadeiro.
Estamos comprovando isso no campo das relações interpessoais, especialmente no período da pandemia. Das ligações em vídeo às celebrações religiosas, a comunicação por meio eletrônico foi, não apenas a solução mais viável, mas também a mais rápida. E ninguém pode dizer que, por ser virtual, não tenha acontecido.
“Tudo está interligado”
Já há algum tempo, a Igreja Católica também vem fazendo a experiência do digital. No final de 2012, o Papa Bento XVI abriu caminho para a evangelização através das redes sociais, marcando presença no Twitter. Na mensagem para o Dia Mundial das Comunicações de 2013, ele registrou: “O ambiente digital não é um mundo paralelo ou puramente virtual, mas faz parte da realidade cotidiana de muitas pessoas”.
Na Encíclica Laudato Si’, o Papa Francisco chama a atenção ao dizer que “tudo está estreitamente interligado no mundo” (LS, 16). E faz todo sentido que Sbardelotto tenha trazido essa referência para sua exposição no Muticom. Considerando que o objeto da carta do pontífice é o cuidado da casa comum, a citação escolhida reflete também o impacto ecológico da tecnologia digital sobre a vida no planeta, conforme anteriormente mencionado.
Onlife = online + vida
O tema da palestra do Prof. Moisés Sbartelotto, “Era do “onlife”: real e virtual se (com)fundem. Também na Igreja?”, reverbera o pensamento do filosofo italiano Luciano Floridi.
“O onlife é perceber essa relação do ambiente digital com a nossa vida em seu sentido integral. Portanto, a nossa vida do ponto de vista biológico, ecológico, social, simbólico, das relações que estabelecemos com as pessoas, tudo isso está relacionado com o ambiente ou os ambientes digitais, especialmente nos últimos anos”, explicou o palestrante.
Segundo Sbardelotto, o uso do termo onlife é sugerido como uma alternativa para evitar que haja uma “dicotomia entre o online e o off-line, como se fossem coisas completamente opostas, completamente separadas”.
A tese defendida por Floridi vislumbra a perspectiva de uma vida conectada. Para aclarar este pensamento, ele se utiliza da metáfora dos manguezais, regiões geográficas em que a água do mar e a água dos rios se misturam; assim, estando em um manguezal, não é possível definir se a água é doce ou salgada. Da mesma forma, segundo o filosofo italiano, já não é possível distinguir quando estamos online ou quando estamos off-line.
Existe uma integralidade no que ele chama de infosfera (em analogia à biosfera) e estudos revelam essa realidade. Uma recente pesquisa, apresentada pela We Are Social e Hootsuite, mostrou que, em 2020, os brasileiros passaram, em média, 10 horas conectados à internet. Esse dado é acentuado pela situação de pandemia.
A pandemia, o digital e a Igreja
“A Pandemia catalisou o processo de digitalização. As igrejas, por exemplo, não estavam acostumadas aos ambientes digitais. O fechamento dos templos, em razão das restrições, acelerou e intensificou essa nova realidade. Por sua vez, o digital, catalisou práticas religiosas inovadoras”, expôs Moisés Sbardelotto.
O professor defende que, no espaço online, o corpo é ressignificado, e isso acontece a partir de novas experiências de interação. “Por outro lado, a ideia de presença precisa ser repensada. A participação no Muticom é uma forma de copresença. Embora não estejamos no mesmo ambiente físico, não se pode negar que estamos presentes e vivendo uma experiência real de contato, graças à rede digital”.
Mas, se ainda assim, a ideia parecer inovadora demais para ser transposta para as práticas espirituais e religiosas, Moisés Sbardelotto vai ao início do cristianismo e recorre ao apóstolo Paulo: “Como dizem alguns, ‘as cartas são duras e fortes’, mas a presença dele é fraca e sua palavra é desprezível’. Aquele que diz isso fique sabendo que, assim como somos pela linguagem e por carta quando estamos ausentes, tais seremos por nossos atos quando estivermos presentes”. (2Cor 10, 9-11).
Seria Paulo precursor do onlife no âmbito cristão? O fato é que mesmo sendo de um outro tempo, de uma outra ecologia comunicacional, então mediada pelas cartas, o exemplo reforça a reflexão de que “mesmo quando estamos ausentes, do ponto de vista físico, estamos presentes na comunicação”.
Comunidade e Participação
Autor do Livro E o Verbo se fez Rede, Sbardelotto trouxe para sua palestra um conceito atualizado das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), às quais ele chama neste momento de CEDs (Comunidades Eclesiais Digitais). “Embora nossas igrejas e centros de pastorais estivessem fechados durante a pandemia, as formações eclesiais continuaram sendo feitas no ambiente digital. Às vezes, rompendo barreiras do ponto de vista geográfico (de uma paróquia ou diocese), de forma que pessoas de outras regiões puderam participar de um rito, de uma celebração, de um encontro por meio do ambiente digital. É um outro modo de ser Igreja que o digital favorece”.
Dessa forma, a experiência de comunidade independe de um lugar físico. “Para que um cristão seja cristão, ele não precisa ir para o Vaticano, nem para a Terra Santa. A fé cristã é uma fé que passa pela história da Salvação, passa pelo tempo, vai além do espaço. O próprio Jesus prometeu e é uma promessa real: ‘onde dois ou mais estiverem reunidos em meu nome, Eu estou aí no meio deles'(Mt 18, 20). Jesus não estipulou esse “onde”, portanto, isso, sem dúvida, vale para o ambiente digital”.
Foto e texto: agenciasignis.org.br