Pretensiosa, quando criança, eu queria ser uma cientista famosa e encontrar a cura para alguma doença incurável. Mas, ao me declarar pretensiosa por ter tido uma ambição científica e desejar sucesso, repito preconceitos contra meu gênero que, infelizmente, estão incutidos em mim, assim como em outras mulheres e meninas.
Por: Manu Falqueto
Desde cedo somos adestradas a nos rejeitar e odiar de várias formas. Ou somos gorda demais, ou magras demais, rimos além da conta, ou não temos um pingo de senso de humor, falamos muito alto ou somos introvertidas em excesso, são inúmeras as formas de dominação e aprisionamento da força feminina, entre elas está negar o acesso à ciência. Por isso, em comemoração ao Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência, celebrado em 11 de fevereiro, devemos fazer questionamentos.
Algumas perguntas são difíceis para nós mesmas, mulheres, por precisarmos romper com barreiras, tabus e preconceitos que foram incrustados em nós, minando nossas essências de desbravadoras e pensadoras. Mas, além desse desafio individual, o maior obstáculo ao lançar essas indagações é que elas sejam ouvidas e não silenciadas dentro deste nosso sistema que é praticamente um serial killer genocida de pensamentos críticos. Sim, a máxima é antiga, mas vale: “não querem que você pense!” Sem conhecimento é mais fácil empurrar goela abaixo falácias e mentiras mais mirabolantes que o conto da carochinha, como o engodo de virar jacaré ao tomar uma vacina.
Agora, imagina se quem ousar sonhar ser cientista for uma pessoa que se reconhece com a identidade de gênero feminino, para incluirmos nesse rol as mulheres trans. O circo está armado! Ao longo da história, mulheres foram e são despojadas com muita violência física e psicológica de sua autonomia de pensamento. Hipócrates (460-377 a.C.), por exemplo, tido como pai da medicina, considerava que a natureza das mulheres não era feita para a intelectualidade. Já Aristóteles (384-322 a.C.) enxergava as mulheres como homens incompletos. Nesse rumo seguiram vários nomes de destaque do pensamento científico da Antiguidade, Idade Média, Idade Moderna e, infelizmente, Contemporaneidade, como o bioquímico Tim Hunt, Nobel de fisiologia ou medicina em 2001. Durante uma conferência Mundial de Jornalistas Científicos, na Coreia do Sul, em 2015, Hunt teria dito que quando mulheres e homens trabalham juntos em laboratórios “você se apaixona por elas, elas se apaixonam por você, e quando você as critica, elas choram”.
Mas, para não darmos mais audiência aos cientistas homens totalmente enganados em suas conclusões nada científicas sobre a inteligência feminina, vamos pensar nas mulheres. Aqui cabe outra pergunta: quais são as mulheres cientistas que conhecemos? Não complico, pedindo nomes de cientistas brasileiras. Se você respondeu essas perguntas, parabéns! Continue assim e semeie os nomes dessas mulheres por onde passar. Entretanto, as mulheres são minorias nos espaços de pesquisa e produção de conhecimento. O relatório “A jornada do pesquisador através de lentes de gênero”, atualizado em 2020, feito pela Elsevier, uma empresa holandesa especializada em publicação de conteúdo científico, revela que apesar dos avanços, do crescimento da presença feminina, permanecem desigualdades de gênero. O documento, feito com 26 áreas temáticas e olhando dados de 15 países, inclusive o Brasil, procurou identificar a participação em pesquisas e progressão em carreiras.
Além disso, as mulheres são figuras escassas no rol de representações midiáticas sobre a ciência. Diante disso também vale pensar: quais profissões ou funções das protagonistas femininas são disseminadas pelos meios de comunicação?
Nas telenovelas brasileiras e mexicanas, conteúdos presentes no cardápio nacional, vemos muita trabalhadora doméstica, mulher perua com marido empresário, frequentadora de salão, idosas que só ficam na janela cuidando da vida alheia, moças com a missão nata de dopar o mocinho tapado da história para simularem uma cena de sexo e separar o casal da trama… e a lista segue com vários estereótipos femininos passando a ideia errada de que mulher não faz nada de interessante na vida a não ser odiar outra mulher. Mas, mulher cientista mesmo que é bom é raro.
Mas, você deve estar com seus botões, “poxa, tem uns conteúdos diferentes, com mulheres mais empoderadas”. Sim, tem mesmo. Existem iniciativas inovadoras e louváveis de narrativas com diversidade de representações e conferindo representatividade a nós garotas, tanto no cinema hollywoodiano, quanto nas produtoras independentes do cenário audiovisual brasileiro. São movimentos importantes e que precisam se consolidarem para vencer a retórica vazia que prega com um charlatanismo incomparável que a luta por direitos e a conquista desses espaços são exageros ou “mimimi”.
Eu sou cientista. Apesar de afirmar isso e ter medo de algum pesquisador da área de exatas ou biológicas saltar por trás da geladeira me negando esse título, porque sou de humanas. Só que, além dessas minhas inseguranças, com raízes em todo esse processo de exclusão de gênero, ser mulher cientista é difícil, porque o machismo não fica do lado de fora do laboratório, da universidade ou do centro de pesquisa. Os preconceitos estão lá e várias vezes somos interrompidas quando falamos, taxadas de histéricas, julgadas pelo nosso corpo e roupas e não resultados e inferências, não temos apoio na maternidade, somos desvalorizadas e não reconhecidas por sermos mulheres.
Porém, mesmo com todos esses entraves, tão diluídos no nosso meio social que se camuflam de naturais, mulheres vencem essa odisséia que deixaria no chinelo aquela de Odisseu, o outro grego meio machista, especialmente, em relação à sua esposa Penélope. Reza a lenda que ele a abandonou com filho pequeno nos braços por vinte anos e ela, uma exímia administradora, gerenciou as propriedades, empregados, criou o filho deles e de quebra lidou com um monte de inimigos do marido que cobiçavam a fortuna que ela fez prosperar. Mas, a epopéia só enaltece ele, que ficou passeando pelos mares, arranjando confusão com deuses, ciscando fora do terreiro da Penélope e matando criaturas místicas e poderosas por serem diferentes dele.
Então, ainda que relegadas da história oficial, sofrendo as intempéries do paternalismo, mulheres tornam-se cientistas promissoras e responsáveis por grandes avanços fazendo deste mundo um lugar melhor para se viver.
Marie Curie (1867-1934) foi uma dessas cientistas de mão cheia, descobriu dois elementos da tabela periódica, o rádio e o polônio, investigou a atividade deles, a radioatividade. Graças a isso temos a radioterapia. Não é à toa que foi a primeira mulher a receber dois prêmios Nobel em áreas distintas, química e física. Outra desse naipe foi a matemática Ada Lovelace (1815-1852) que desenvolveu o primeiro algoritmo que se tem notícia. Por conta disso, foi possível fazer cálculos mais avançados programar, criando vários sistemas informatizados, computadores e celulares. Ou Kalpana Chawla (1962-2003), engenheira aeronáutica, doutora e primeira mulher indiana a viajar para o espaço. Kalpana ajudou a conduzir mais de 80 experimentos de microgravidade.
A lista é grande, temos a médica Fe Del Mundo (1911-2011), filipina e primeira mulher a estudar medicina em Harvard. Durante sua longa carreira, Fe empenhou-se na área da pediatria. Ou a bióloga e Prêmio Nobel da Paz, Wangari Maathai (1940-2011), queniana e primeira mulher do leste da África a ter doutorado. Wangari usou sua ciência estimulando mulheres a replantar árvores no seu país. Na América Latina podemos citar a irmã Juana Inés De La Cruz (1651-1695), autodidata apaixonada por estudos, tanto que conseguiu apoio para continuar absorvendo conhecimento que desejava, ou a zoologista Bertha Lutz (1894-1976), além de cientista, a brasileira foi ativista dos direitos das mulheres.
Neste momento calamitoso de ataques diários à Educação, Ciência, mulheres, à diversidade e a qualquer resistência a esse recrudescimento, orquestrado por uma política de morte, precisamos fortalecer e estimular nossas meninas cientistas. Então, para que esta comemoração seja efetiva, peço que os homens respeitem as mulheres, revejam suas atitudes, enxerguem os machismos diários e invisíveis praticados que podem matar uma grande cientista que pode estar ao seu lado. Mas, acima de tudo, desejo que nós mulheres reconheçamos nosso potencial gerador de vida, de amor, de ciência, que sejamos mulheres pretensiosas, sim!
Referências:
Relato do caso de Tim Hunt – https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2015/06/cientista-ganhador-de-nobel-se-desculpa-por-comentarios-machistas.html
Pesquisa Elsevier – https://www.elsevier.com/__data/assets/pdf_file/0011/1083971/Elsevier-gender-report-2020.pdf
Livro “Mulheres Incríveis: artistas e atletas, piratas e punks, militantes e outras revolucionárias que moldaram a história do mundo”, escrito por Kate Schatz, ilustrado por Miriam Klein Stahl, publicado em 2017 pela editora Astral cultural.