Semeadores de solidariedade e de esperança pascal: cristãos leigos e leigas em tempos da pandemia

Tenho no coração os cristãos leigos e leigas neste tão grande território, cada um em seu espaço geográfico, familiar ou profissional, Igreja viva, unida pela fé de Jesus Cristo e solidária a todos os irmãos e irmãs em humanidade. Neste tempo da pandemia do novo corona vírus, em que somos obrigados a parar, temos uma chance de crescer na vivência da solidariedade e da espiritualidade. 

Por Lúcia Pedrosa

Falemos a partir da esperança de um Deus que está presente através de Jesus Cristo, por seu Espírito de amor-serviço, comunhão e liberdade. A fé madura, nascida da experiência pascal, entranha solidariedade e esperança. Deus (– Presente!) caminha conosco e em nós. Com sua luz, nos convida a renovar nossa fé, nos dias de hoje.

Não queremos uma fé infantil, que delega a Deus todas as responsabilidades por nosso presente e por nosso futuro. A fé infantil deseja o Deus mágico e suspira por retribuições divinas à altura dos esforços pessoais. É preciso dizer não à fé infantil que pede a cura divina, mas sem uma resposta humana. Ilude-se buscando o rito que realize desejos e caprichos. A fé infantil diminui o Deus de Jesus Cristo porque desdenha o seu caminho de vida, morte e ressurreição por nós. Apouca a humanidade chamada a construir um mundo novo na liberdade e na criatividade.

Não queremos uma fé como aquela proposta por Satanás a Jesus, no relato das tentações. Hoje, ela tenta Deus com jejuns vazios, incapazes de converter o coração e de dilatar a capacidade de serviço humilde. Ao contrário, configura manifestação de poder manipulador sobre os pobres e pessoas simples em sua fé, nuvem de fumaça a esconder a covardia e a crueldade.

Não queremos a autossuficiência arrogante que faz ver a realidade com a ótica da onipotência, do controle e do domínio sem compaixão.  Tampouco queremos o medo que aperta o coração, obscurece a mente, paralisa as mãos e acovarda a existência chamada à expansão.

Desejamos a fé lúcida que repete, com São Paulo, que Deus é maior que nosso coração e que, sem embargo, conhece a fragilidade, o medo e a limitação. A cada momento, oferece um recomeço. Abre caminhos de vida, convida à conversão. Desperta a inteligência para considerar e dilata o coração para sentir o sofrimento dos pobres e dos mais vulneráveis como o grito do próprio Deus a ser ouvido e atendido. Para além do que podemos nem em sonhos imaginar, a fé ajuda a intuir a novidade benfazeja de Deus em nosso hoje, aparentemente impossível, a espreitar nosso mundo, nossa interioridade, nossa janela, nossos trabalhos, nossa juventude adormecida.

 “O Senhor desperta, para acordar e reanimar a nossa fé pascal”, nos lembrou Francisco ao comentar o texto da tempestade acalmada (Mc 4,35), em sua homilia na Benção Urbi et Orbe, em plena pandemia (27/03/20). Não é Jesus que não se importa conosco, somos nós que dormimos! Ele, ao contrário, nos convida “a despertar e ativar a solidariedade e a esperança, capazes de dar solidez, apoio e significado a estas horas em que tudo parece naufragar”. Entre distração, orgulho e egoísmo, somos caminhantes em dívida com a vocação de amor a que fomos chamados, com o amor ao próximo, com a bondade da natureza. Nós nos “deixamos absorver pelas coisas e transtornar pela pressa. Não nos detivemos perante os teus apelos, não despertamos face a guerras e injustiças planetárias, não ouvimos o grito dos pobres e do nosso planeta gravemente enfermo. Avançamos, destemidos, pensando que continuaríamos sempre saudáveis num mundo doente”, falou Francisco. Mas não é possível permanecer sempre saudável num mundo doente.

A cura necessária não se circunscreve ao novo Corona vírus. Essa é uma etapa imediata, exige a participação de todos, mas é limitada. A pandemia expõe doenças mais profundas, cuja manifestação se dá por sinais em todos os níveis, como poderiam ser:

– sociedades rapidizadas, baseadas no consumo e na produção, sem tempo para reflexão e convivência e sem consonância com os ritmos mais lentos de recuperação da natureza;

– ecossistemas gravemente afetados por um desenvolvimento sem ética;

– individualismo gerador de tristeza e falta de sentido;

– cultura do descarte cada vez mais enraizada nas decisões econômicas e políticas;

– economia que produz riqueza com desigualdades;

– sistema de saúde pública debilitado e em alguns contextos sucateado;

– mercado de trabalho precarizado, com dezenas de milhões de trabalhadores informais à margem sequer de um cadastramento que viabilize a implantação justa de políticas de renda mínima para encarar a crise econômica.

No Brasil, chama a atenção que, durante a pandemia, as palavras “desemprego” e “desempregados”, que pouco ou nenhum lugar tiveram nas decisões econômicas governamentais brasileiras nos últimos dois anos, subitamente aparecem, em contexto ideológico, para justificar medidas contra o distanciamento social, contra as orientações da OMS e contra a totalidade das comunidades científicas como forma de conter o novo corona vírus. Que súbito interesse! Mas não se trata, como sabemos, de interesse pelos espoliados, mas sim defesa de um sistema econômico que briga com a vida, ao invés de garantir a vida.

Diante das profundas doenças, expostas neste tempo de pandemia, experimentamos pequenas curas. Este tempo nos coloca em luta contra o nosso afã de controle e nos abre ao exercício da confiança, da solidariedade, especialmente com os pobres e os que tiveram seus trabalhos encerrados de um dia para o outro. Abre-nos ao exercício da convivência familiar, em espaços pequenos e responsáveis pelo acompanhamento de nossas crianças. Coloca-nos diante do aprendizado de viver sozinho. Suscita perguntas. Talvez nosso “trabalho remoto” não será tão eficiente – como professora universitária e educadora, penso nisso todos os dias. Mas também este tempo faz experimentar novos valores, interações, conhecimento das pessoas (eu não sabia, mas tenho um aluno enfermeiro, na linha de frente desta epidemia, manifestação do operante Espírito de Deus). Que atitudes e conhecimentos construirão um mundo novo?  

A fé nos ajuda a ver que a força do Espírito de Cristo continua atuante e forte. Há um mosaico de dons e serviços que vão tecendo esta rede de dependências recíprocas. Vemos este caleidoscópio de dons naqueles que entregam sua vida neste momento, e aqui podemos citar os trabalhadores da área da saúde, cuidadores e cuidadoras, auxiliares de enfermagem, enfermeiros e enfermeiras, médicos e médicas. O Espírito atua em tantos que tornam a vida mais pujante, mais humana ou simplesmente possível nestes tempos difíceis. Atua em milhares de voluntários da saúde, das comunidades, dos edifícios residenciais. Nos jornalistas engajados que buscam trazer as situações concretas do dia-a-dia das cidades. Nos trabalhadores no campo, nos mercados e supermercados, nos que se dedicam a serviços de limpeza, nos bombeiros, motoristas de caminhões. Nos sacerdotes, religiosos e religiosas, pastores que deram a vida e acompanham, de alguma maneira, a seu povo. O Espírito nos questiona na figura dos entregadores de mercadorias, muitas vezes explorados, que subitamente conhecem uma relevância que nem em sonho poderiam imaginar… Enfim, são tantos que estampam em nossa cara e nos jornais a radical interdependência mutua, a participação de todos e todas na humanidade comum, a sinalizar nosso vínculo originário. Neste entramado humano não estaria o Espírito suscitando algo novo?

Tudo isto nos mostra que é preciso viver o nosso HOJE, segundo as medidas necessárias de contingenciamento da pandemia, porém olhando para o FUTURO que queremos construir. Passar simplesmente as atividades da agenda para os próximos meses de primavera contribuirá para um mundo menos doente? Certamente não. É preciso um novo discernimento de nossas prioridades, hábitos, projetos.

Sim, neste tempo de pandemia, podemos pensar em algo maior, em uma saúde e salvação inclusivas, baseadas em novas relações pessoais e sociais. Fundadas no respeito e no reconhecimento de todos e todas – não apenas em um pacto de medo. Uma salvação e uma saúde inspiradas na salvação que a vida-morte e ressurreição de Jesus nos traz, a partir dos pobres e espoliados da terra.

Podemos redescobrir o silêncio benfazejo que estava escondido pelo ruído e pela pressa e descobrir a força que brota da fragilidade, do experimentar-se finito e dependente. Santa Teresa de Ávila, no século XVI, comparou a interioridade humana a um castelo luminoso, feito de um claro cristal ou um diamante. A luminosidade não vem da força de projetos realizados, mas da acolhida humilde do Deus da vida, que faz morada no interior humano como luz, a desejar não mais do que receber hospitalidade em nossos sentidos, hábitos e projetos. A porta deste castelo, escreve Santa Teresa, é a oração humilde e a consideração de que algo não vai bem. A luminosidade acolhida faz da pessoa como um jardim com plantas saudáveis, flores perfumadas e frutos. Mas é preciso acolher a luz, quere-la, duvidar dos ambientes tenebrosos que matam, apequenam e enfeiam a vida, alimentam a injustiça e a dominação nas relações familiares e sociais. 

Somos chamados para a luz e para caminhar na luz. Neste tempo de pandemia, somos convidados a abrir espaço e tempo a esta luz, no silêncio e na oração, para que a fé amadureça. Como a fé de Maria, a mãe de Jesus. Fé que deseja fazer mulheres e homens inconfundíveis, não por seus projetos ou aparente poder diante de Deus e das pessoas, mas por seus frutos de serviço, justiça, respeito e solidariedade. Talvez este tempo de isolamento possa nos ajudar a ser mais humildes para encarar nossa verdade frágil e dependente de todos e, assim, mais sábios e purificados na fé, mais verdadeiramente humanos. Semeadores de solidariedade e de esperança pascal.

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