Achados e perdidos e comida

A experiência de perder um objeto é muito comum. Quando perdemos algo de valor como um documento, por exemplo, ficamos refazendo nossas ações anteriores, reviramos nossa mente e nossos pertences e quando não encontramos sentimo-nos inquietas/os e frustradas/os.

Por: Maria Antônia Marques

Para além dos objetos perdidos, às vezes perdemos pessoas e acontecimentos num passado distante e nem sempre nos damos conta, ficando essa perda por anos a fio até que a nossa memória seja acionada por novos fatos.

Neste tempo de pandemia, tive que aprender a cozinhar. Fiz diversas tentativas, com alguns acertos e erros, mas sem nada desperdiçar. Muitas vezes, pensei em minha mãe, que aprendeu a cozinhar com poucos ingredientes, pois a situação econômica era muito difícil. Nós, as filhas e os filhos, aprendemos a não reclamar, pois ela costumava dizer: “Agradeça a Deus porque vocês ainda têm alguma coisa para comer”. Minha mãe tinha um tempero delicioso e se orgulhava de sua comida. Cozinhar era um saber carregado do sabor transmitido de geração em geração. Nossas ancestrais sabiam, por experiência, combinar os nutrientes de nossa alimentação. Apesar das limitações, comíamos produtos vindos da terra. Era saudável.

Entre preparar uma refeição e outra, lembrei-me de uma senhora, que ficou perdida nos achados e perdidos da minha memória da década de 70. Não consigo lembrar o rosto dela, somente o nome: dona Catarina. Morávamos no distrito de Santa Cruz da Prata/MG, onde esta senhora tinha um sítio e houve um ano que meu pai ficou seis meses sem receber salários. Como alimentar a família de sete filhos, sendo o mais velho, na época, com 12 anos? Por quase um ano, dona Catarina nos deu um litro e meio de leite. Minha mãe varava noites costurando e recebia como pagamento o que as pessoas podiam pagar. Ela fez diversas costuras para os moradores da Conferência São Vicente, que pagavam com trigo integral, alimento recebido do governo. Muitas vezes, o nosso almoço e janta era trigo com leite.

No momento atual, muitas mulheres e homens, especialmente as pessoas que vivem de pequenos serviços, ficaram sem ter como conseguir o seu sustento cotidiano e manter a sua vida. Diaristas, empregadas domésticas, cabeleireiras/os, manicures, vendedoras/es ambulantes e tantas outras e outros tiveram suas vidas totalmente transformadas. Muitas pessoas vivem uma situação insuportável. Há muitas mães e pais que não conseguem alimentar suas filhas/os. Milhares de famílias que, além da dor de perder um ente querido, sentem a dor da fome. Ao mesmo tempo, nosso coração se enche de esperança porque “as catarinas” se multiplicam em uma imensa rede de solidariedade, amenizando a fome e o sofrimento de muitas pessoas.

O único caminho para uma Igreja que se diz seguidora de Jesus Cristo é o da solidariedade. As primeiras comunidades cristãs, na tentativa de manter viva a memória e o projeto do Reino de Deus anunciado e vivido por Jesus, recordam suas atitudes a serviço das pessoas excluídas. Um desses fatos é a narrativa do encontro entre Jesus e a viúva de Naim (Lc 7,11-17).

De acordo com a narrativa lucana, próximo à cidade de Naim, Jesus se encontra com a procissão do enterro do filho de uma viúva. O relato da ressurreição do filho da viúva de Naim é um texto que foi composto a partir dos relatos dos profetas Elias e Eliseu (1Rs 17,17-24; 2Rs 4,8-37), cuja tradição afirma que eles ressuscitaram o filho de uma viúva. A semelhança com Elias e Eliseu faz o povo reconhecer Jesus e proclamar: “Um grande profeta surgiu em nosso meio” (Lc 7,16; Dt 18,15).

Duas vezes esta mulher enfrentou a morte: primeiro a do marido e agora a dor da perda do filho e mais do que isso: ela ficou desamparada e desprotegida legalmente. No meio da multidão, o olhar de Jesus se dirigiu para a mulher anestesiada em sua dor. A situação da mulher o fez sentir a partir de dentro: ele “ficou comovido” (Lc 7,13). Em vez de se desviar, Jesus se aproximou e lhe disse: “não chores”.

Nesse episódio, ninguém pediu ajuda para Jesus, foi ele que tomou a iniciativa. A sua atitude estava enraizada na experiência de um Deus amor, compassivo e protetor dos fracos, conforme ele havia aprendido na tradição de seu povo: “Javé protege o estrangeiro, sustenta o órfão e a viúva” (Sl 146,9). Viúvas e órfãos representavam os mais pobres no Antigo Testamento (Sl 68,6; Eclo 4,10).

Esta viúva sem filhos pode representar a comunidade e Deus tem compaixão devolvendo-lhe o sustento da vida: “Deus visitou o seu povo” (Lc 1,68). Deus não quer que suas filhas e seus filhos fiquem presos à dor, mas que acreditem na esperança, mesmo diante da morte e da falta de perspectivas. Ele quer que sejamos solidárias/os ante a dor humana ajudando a devolver a alegria de viver para nossos próximos.

Como leigas e leigos, missionárias e missionários, ficamos muitas vezes sentimos um gosto amargo diante do sofrimento alheio. Uma sensação de impotência. É possível que Jesus tenha sentido suas entranhas se revolverem diante de muitas situações de morte. A compaixão é um sentimento tão especial, que não se traduz com palavras, mas com gesto concreto. É tempo de se deixar comover ante a dor e a angústia de nossos próximos e distantes. Essa comoção nos ajudará a encontrar caminhos para a solidariedade. Há muitas catarinas em nossa história pessoal, que precisam ser relembradas para nos inspirar novas ações.

É importante que nos alegremos com nossos achados e mais ainda quando reviramos nossa casa interior e encontramos objetos valiosos, que sustentaram a nossa caminhada e nos impulsionam para novas ações no cotidiano de nossa história.

No caminho de Jesus, a comunidade lucana recorda uma ação muito cotidiana: a de uma mulher que tinha dez moedas e perdeu uma (Lc 15,8-10). Ela faz uma busca minuciosa por uma moeda perdida. A sua alegria ao encontrá-la é partilhada com as amigas e as vizinhas. É um ensinamento dirigido a mulheres, e isso indica a presença de mulheres no movimento de Jesus.

Toda a posse da mulher se reduz a dez moedas, portanto extraído do cotidiano de pessoas pobres. A dracma é uma moeda grega e corresponde ao valor de um denário romano. Como essa mulher ganhou esse dinheiro? Em muitas famílias pobres, as mulheres precisavam trabalhar para complementar a renda familiar e a diária da mulher não chegava a um denário. Perder uma moeda significa perder mais de um dia de trabalho.

A alegria da vizinhança pela moeda que foi encontrada é uma imagem para a alegria de Deus (cf. Lc 15,10). Neste texto, Deus é apresentado na imagem de uma mulher pobre. É uma imagem que quase passa despercebida, pois muitas vezes preferimos a imagem de Deus como um pastor ou a de um pai misericordioso. Mas não de uma mulher pobre e ainda atrapalhada, afinal ela devia ter guardado essas moedas em lugar seguro. A mulher que procura diligentemente por sua moeda mostra a face de um Deus que não se cansa de procurar por suas filhas e filhos e que partilha a sua alegria com as pessoas que assumem o projeto da solidariedade e da misericórdia.

O ver de Deus, como o ver de Jesus, gera aproximação e transformação da realidade. Deus vê o sofrimento do seu povo e desce para libertá-los (Ex 3,7). Jesus se aproxima da porta e vê a desolação de uma mulher viúva e se aproxima: “Quando a viu, Jesus encheu-se de compaixão” (Lc 7,13; cf. Mc 6,34). Como igreja cristã somos chamadas/os a ver a realidade e se envolver a ponto de agir. Que a nossa vida , assim como a comida, seja temperada com ingredientes que produzam mais vida, especialmente o tempero da compaixão e da solidariedade.

Maria Antônia Marques é assessora do Centro Bíblico Verbo e professora no Instituto São Paulo de Estudos Superiores – ITESP.

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