Caminhos de espiritualidade para tempos de pandemia

A Semana Santa não se resume ao Tríduo Pascal evidentemente, mas esse é seu momento culminante.

Por: Antonio Manzatto

  1. Mesmo que todos os dias da semana tenham uma dinâmica de espiritualidade específica, apontam e convergem para o Mistério Pascal, que é o centro de referência da fé cristã e de sua espiritualidade. Toda a questão se esclarece a partir do significado que a morte e ressurreição de Jesus têm para a vida de fé do crente.

Tornou-se lugar comum explorar, durante toda a Semana Santa e mais ainda no Tríduo Pascal, a questão do sofrimento de Jesus, de seu sacrifício pelos pecados da humanidade. Chegou-se mesmo a cultivar a compreensão de que ele morreu “em lugar” dos seres humanos. Poucas vezes, contudo, se buscou compreender as teologias que subjazem a tais perspectivas.

A teologia da morte vicária de Jesus é medieval e traz todas as conotações daquele ambiente eclesial, que também explica as referências à “quantidade” de sofrimento de Jesus. Sim, a Tradição e a Escritura afirmam que Jesus morreu “para a remissão dos pecados” e, assim, morreu pelos pecadores. Mas dizer que “morreu no meu lugar”, como repete a canção pretensamente litúrgica, é referência à teologia medieval. Aqui não se trata de correto ou incorreto, mas sim de se perceber que tais afirmações teológicas são possíveis em determinado contexto. Outro contexto, por isso, pode possibilitar leituras teológicas distintas.

Assim também com a questão do sofrimento que tem, sim, uma perspectiva redentora. Muito se insiste, ao menos em certos lugares, na quantidade de sofrimento de Jesus como se tal quantidade fundasse sua razão soteriológica. Algo como dizer que “ele nos salvou porque ninguém sofreu tanto quanto ele”. Ora, que a morte de cruz é violenta e dolorosa é evidente, ainda mais precedida da flagelação. Sem contar o fato de que Jesus foi abandonado por todos e, ainda, vítima de grande injustiça. Em tudo isso há uma gama imensa de sofrimento, físico e psíquico. Contudo, é muito difícil ponderar sobre a intensidade do sofrimento que, no limite, só conhece quem está sofrendo.

Esse caminho de contemplação do sofrimento tem sido apontado como uma possibilidade de vivência da espiritualidade da Semana Santa em tempos de pandemia. Afinal, todos estão sofrendo enormemente por conta dessa doença, inclusive quem não foi por ela contaminado mas precisa viver isolado, vê seus entes queridos serem atingidos ou, então, sofre suas consequências por conta da pobreza, exclusão e descarte. Falta de atendimento de saúde, falta de vacina ou falta de esperança, tudo isso faz a população sofrer muito. Muitos aproximam essa situação do sofrimento de Jesus, como se fosse maneira de atualizar, na minha carne, o que faltou ao sofrimento de Jesus (cita).

2. É sempre bom voltar ao essencial, ao mais importante, como se diz quando se enfatiza a centralidade para a fé cristã do Mistério Pascal. Ali há dor e sacrifício, sim, e há remissão dos pecados porque a ressurreição vence a morte. A partir daí é bom pensarmos em alguns pontos que nos ajudam a compreender a ação salvadora de Jesus e a vivenciar a espiritualidade da Semana Santa nesses tempos de pandemia em que vivemos.

O primeiro ponto é que o Mistério Pascal é indivisível. Morte e Ressurreição de Jesus são inseparáveis, de tal forma que quem morre, ressuscita; e só ressuscita quem morreu. O que não morreu, não pode ressuscitar! A realidade da morte de Jesus é afirmada em nossa profissão de fé quando se diz que “desceu à mansão dos mortos”. Portanto, sua morte é verdadeira e apenas assim ele pode ressuscitar. Dizemos também que sua morte é “padecimento”, porque há sofrimento nela envolvido. Mas o foco principal não está aí, mas sim na ênfase soteriológica. Jesus, em sua morte e ressurreição, nos livra do pecado, não nos deixa escravos do pecado. Mas, mais ainda, nos introduz no Reino de Deus que sua ressurreição instaurou definitivamente entre nós.

A dinâmica do Reino de Deus, por isso mesmo, comanda a compreensão do Mistério Pascal. Jesus morre por conta de sua pregação sobre o Reino, que não pode ser aceito nem pelo Império, nem pelo Templo. Não pode ser aceito porque seria sua destruição: a vivência da fraternidade e da ação salvadora de Deus termina com a dominação política e religiosa. Mas a ressurreição de Jesus vence a morte e instaura o Reino da Vida já aqui e agora, apontando para sua plenificação eterna. O Reino não é para depois, é pra já: eu vim para que todos tenham vida, e a tenham em abundância (Jo 10,10).

Nessa perspectiva do Reino da Vida é que se pode pensar uma espiritualidade para a Semana Santa em tempos de pandemia. Templos fechados são apenas lugares de culto que se tornam inacessíveis. A Igreja é a comunidade, e ela não fecha. Ela defende a Vida. Igrejas fechadas não significam que Deus é esquecido; ao contrário, revelam que a Vida é prioritária, mais importante que os ritos e bem mais fundamental que os bens econômicos. Não nos curvamos diante dos poderes do mundo, mas nos consagramos à defesa da vida, sobretudo lá onde ela é mais ameaçada. Em tempos de pandemia, ela é ameaçada nas aglomerações (mesmo religiosas), na teimosia em não se usar máscaras, no negacionismo, na falta de vacina e no desprezo à vida humana.

A espiritualidade da Semana Santa não precisa ser vivida em perspectiva dolorista, que apenas alimenta o conformismo e dá margem, por isso, ao incremento da dominação política e econômica. O Mistério Pascal significa nossa salvação e nos liberta da dominação do pecado. Por isso, livres do mal e da morte, podemos nos consagrar à defesa da vida, ansiando, na esperança, para que ela seja nova e plena para todos, a partir daqueles que são excluídos da sociedade. A defesa da vida nos coloca em perspectiva de espiritualidade pascal nesses tempos de pandemia.

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