Caridade e Laicato

A caridade corre riscos quando os Cristãos leigos e leigas não percebem que todos somos potenciais transmissores de um vírus, que talvez alguns de nós ficaremos ilesos, mas o vírus pode chegar em alguém que não terá a mesma sorte, ou mesmo quando defendemos e propagamos ideias que colocam a vida de algum de nossos irmãos em risco.

Por: Marco André Dias Cantanhede

A caridade se confunde com o cristianismo. O primeiro milagre da vida pública de Jesus foi em um simples casamento em Caná como nos relata João: “Estava a mãe de Jesus, também Jesus e os discípulos foram convidados. Faltou vinho, e a mãe de Jesus lhe disse: ‘Eles não têm mais vinho!’” (João 2,1-3). Jesus foi convidado por sua mãe a realizar a conversão da água em vinho, por caridade aos noivos, por compreender a situação embaraçosa que a falta do vinho traria aos noivos. Esse trecho bíblico é fundamental para a compreensão que a caridade não deve ser concebida como algo nobre, elevado e especial, que aparece em grandes momentos de necessidade, mas que faz parte do cotidiano do cristão, revelando-se sempre que há uma necessidade e a compaixão.

O mistério da encarnação em si é um gesto de caridade de Deus com seu povo. Lucas deixa claro esse gesto em “Ele me ungiu para anunciar a Boa Notícia aos pobres. Enviou-me para anunciar a libertação aos presos e a recuperação da vista aos cegos, para dar liberdade aos oprimidos, e para anunciar o ano da graça do Senhor” (Lucas 4, 18-19). A presença de Jesus no mundo, em um momento da história, é o desejo de Deus que a caridade (amor ao próximo) seja a nova ordem e novo sentido do mundo. A caridade quando é encarnada no mundo produz efeitos claros e objetivos como a libertação e a Graça.

O Cristão leigo e leiga (laicato) foi marcado pela caridade em seu batismo. O batismo é o compromisso vivo que o laicato assume de viver a caridade no dia a dia. Lumen Gentium descreve a nossa vocação como “a vocação própria dos leigos é administrar e ordenar as coisas temporais, em busca do reino de Deus … em todas as profissões e trabalhos, nas condições comuns da vida familiar e social … brilhando em sua própria vida pelo testemunho da fé, da esperança e do amor, de maneira a manifestar Cristo a todos os homens” (LG 31b). A caridade é a maneira do cristão leigo e leiga apresentar Jesus ao mundo, as necessidades e as carências humanas no dia a dia nos tocam profundamente, assim como no casamento em Caná, temos compaixão e somos impelidos a fazer algo para socorrer o próximo.

A caridade está em perigo. Vivemos tempos em que somos estimulados a competir um com os outros pela sobrevivência. Somos convidados a ter armas para nos proteger, trazendo o perigo da morte para dentro de nossas casas. Somos levados a olhar o próximo que pensa e age diferente como inimigo e não apenas como aquele que tenho divergência, respeitando-o em sua humanidade. A caridade corre riscos quando os Cristãos leigos e leigas não percebem que todos somos potenciais transmissores de um vírus, que talvez alguns de nós ficaremos ilesos, mas o vírus pode chegar em alguém que não terá a mesma sorte, ou mesmo quando defendemos e propagamos ideias que colocam a vida de algum de nossos irmãos em risco.

A caridade em momento de pandemia. A pandemia releva a fragilidade humana frente ao vírus, mas também a fragilidade do sistema social construído pela humanidade para cuidar da vida. O sistema definitivamente não está a serviço da vida, mas foi construído para a preservação de uma acumulação financeira e para determinados resultados econômicos.

O batismo convida os cristãos leigos e leigas, durante esse momento único, a pensarem no próximo e a colocar em prática a caridade, pois, somos nós, é o nosso povo, que está no ônibus, que perdeu o emprego, que não sabe como pagar o aluguel, que tem que correr riscos para o patrão abrir a loja e que está confuso com a desinformação propagada pelas autoridades. Nós, o laicato, somos também chamados à dividir o pouco que temos, convidados à organizar as nossas comunidades para ajudar as pessoas em risco, temos que articular as forças sociais e políticas para que as políticas públicas emergenciais cheguem de maneira efetiva até todos os brasileiros (não somente como propagandas em redes sociais).

A passagem do Bom Samaritano como modelo de caridade para o laicato. Lucas nos apresenta como o exemplo (modelo) a ser seguido pelo cristão leigo e leiga: “Certo homem descia de Jerusalém para Jericó. Caiu nas mãos de assaltantes, que lhe tiraram a roupa, o espancaram e foram embora, deixando quase morto. Um certo samaritano, que estava viajando, chegou junto dele, viu e se encheu de compaixão. Aproximou-se dele e tratou suas feridas … colocou o homem em seu próprio animal e o levou a uma pensão, onde cuidou dele.

No dia seguinte, tirou duas moedas de prata, deu-as ao dono da pensão e disse: ‘Cuide dele’” (Lucas 10,25 33-35). A caridade a ser vivida pelo laicato é um projeto de vida que se inicia com a compaixão com aquele que sofre, que age frente o sofrimento do próximo, carrega ele, cuida dele e coloca a “mão no bolso” pelo próximo. A passagem de Jesus é perfeita como modelo de vivência do nosso batismo, pois traz quatro pilares da caridade: compaixão, cuidado, dedicação e partilha.

A simplicidade das coisas de Deus. A passagem do primeiro milagre da vida pública de Jesus (João 2,1-3) demonstra a simplicidade das coisas de Deus, pois era apenas um casamento e a reputação dos noivos. Com isso, somos chamados a exercer nossa caridade no dia a dia quando amamos nossos filhos e dedicamos tempo à eles, também quando paramos para escutar nossa esposa e marido, quando ligamos para uma prima para saber como tem passado, quando visitamos a vizinha que não passou bem ontem à noite, quando servimos um prato de comida, quando dividimos os afazeres do lar, quando socorremos um companheiro que está sem trabalho, quando ajudamos um colega no trabalho e quando perdoamos uma dívida que fará a diferença para o próximo.

A conversão apresentada pelo batismo é a mudança de sentido e de valores que colocam o próximo como principal compromisso da vida (a caridade no dia a dia). Papa Francisco comenta sobre a santidade “ao pé da porta” que nasce da simplicidade do cotidiano como nos pais que criam os seus filhos com tanto amor, nos homens e nas mulheres que trabalham a fim de trazer pão para casa, nos doentes, nas consagradas idosas que continuam a sorrir (Gaudete et Exsultate 7).

As oportunidades de caridade. É momento de resgatar a caridade como prática primeira e última do Cristão leigo e leiga. O povo brasileiro, assim como o homem da passagem do bom Samaritano, cai nas mãos dos assaltantes quando lhe retiram a possibilidade de aposentadoria, quando transformam direitos (FGTS, carteira de trabalho, férias) em privilégio, quando contestam as cotas étnicas e sociais, ou mesmo quando resolvem que a Amazônia deveria gerar lucro via o agronegócio e a mineração. Somos espancados e deixados quase mortos quando nos “vendem” o projeto de que a educação, a saúde, o saneamento básico, a segurança e a previdência devem ser privatizados, limitando o acesso somente os brasileiros e brasileiras que podem pagar.

Nesse contexto, são inúmeras as oportunidades para vivermos o nosso batismo e a caridade, pois a pandemia recente e o mundo como um todo clama diariamente por nossa caridade. O Cristão leigo e leiga tem que estar engajado em alguma ação de caridade no seu dia a dia, respeitando o dom e chamado de cada um, podendo ser algo muito simples como auxiliando um irmão que precisa fazer compras durante o isolamento social, passando pelo engajamento e liderança em ações de transformação social, ou mesmo atendendo ao chamado do Papa Francisco que afirma que “a política é uma forma alta de caridade” [1].

A caridade é o sinal de que o laicato escutou à Deus, compreendeu e assumiu o Batismo. Cezar Kuzma afirma que Jesus era leigo e como tal assumiu veementemente a sua missão diante do Pai, colocou-se como um servo de Deus no mundo, e como leigo, foi a lugares que a religião da época não conseguia atingir, chamando os excluídos de próximos, perdoando os condenados, levando luz ao perdidos e deixando amor pelo caminho. Não é muito diferente do que muitos e muitas fazem hoje e somos chamados a continuar fazendo. O cristão leigo e leiga é quem pode e deve estar e exercer a caridade nos lugares mais inusitados.  A caridade coloca o próximo como horizonte e caminho a ser percorrido, e nesse sentido, é o sinal da presença do Cristão leigo e leiga no mundo.

Por fim, a caridade se confunde com o cristianismo, o mistério da encarnação em si é um gesto de caridade de Deus com seu povo e o batismo é o compromisso do Cristão leigo e leiga com a caridade. A caridade corre perigo no mundo atual com o reforço de valores como a competitividade, o individualismo, o privatismo, da justiça individual e a supremacia do privado sobre o coletivo. A pandemia escancara as deficiências dos valores do sistema mundial atual e cria a necessidade urgente da prática da nossa caridade. O “Bom Samaritano” é o modelo de caridade para o laicato, considerando a simplicidade das coisas de Deus e a necessidade de transformação das realidades. A caridade é o sinal de que o laicato escutou à Deus, compreendeu e assumiu o Batismo.

Referência:

FRANCISCO. Gaudete et Exsultate Sobre o chamado à santidade no mundo atual. São Paulo: Paulus, 2018.

FRANCISCO. Evangelii Gaudium A alegria do Evangelho sobre o anúncio do Evangelho no mundo de hoje. São Paulo: Edições Loyola, 2014.

KUZMA, C. Leigos e leigas: força e esperança da Igreja no mundo. São Paulo: Paulus, 2009.

[1] Fonte: Disponível em <https://noticias.cancaonova.com/especiais/pontificado/francisco/papa-reza-pelo-bom-exercicio-da-politica-e-diz-forma-alta-de-caridade/> acessado em 05/07/2020

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