FINADOS: CELEBRAMOS A MORTE OU A VIDA?

A Igreja Católica celebra todos os anos o dia 02 de novembro como o dia dedicado aos mortos. Finados, quer dizer fim. Porém, o fim pode ser visto como término, conclusão da vida, mas também como meta, finalidade e objetivo de nossa existência.

Por: Pe. Paulo Roberto Gomes

Celebrar os mortos, ainda que isso nos traga saudades, tristeza e dor, não significa se colocar diante da fatalidade da vida, mas experimentar e refletir sobre a nossa esperança, vivida do Antigo Testamento até a vinda de Jesus, o Cristo. Ele clareia de forma surpreendente nossa origem, o sentido de nossa vida e o que aguardamos para além da morte.

1.A TRINDADE AMIGA DA VIDA

Recebemos a vida como uma dádiva, um dom, um presente da Trindade Santa. A vida nos é dada por Deus para grandes coisas e Ele é o primeiro interessado em nosso bem e em nossa felicidade. Tudo o que depender de Deus, sendo Ele o “amigo da Vida” (Sb 11,26), Ele fará. No entanto, nem tudo depende do Senhor. Há muita coisa que depende de nós, outras dependem dos outros, das circunstâncias da própria existência, estruturas, conjunturas e outras coisas mais.

A vida é um presente de Deus, mas o que nós fazemos com ela é responsabilidade nossa. Por isso, a importância das decisões que tomamos acompanhadas de um bom discernimento. Neste sentido, viver é dom e tarefa. Não estamos prontos, estamos nos construindo, nos fazendo e refazendo-nos a cada dia.  Paulo nos convida a crescer “até atingir a maturidade de Cristo (Ef 4,13).

Nossa identidade, enquanto pessoa e cristão, vai se delineando pouco a pouco. Somos os nossos sonhos, nossas relações afetivas, as amizades que estabelecemos, as pessoas que amamos, o bem ou o mal que fazemos. Nosso “eu” vai se formando pouco a pouco a partir da história. Algumas coisas são dadas e não há como arrancá-las ou negá-las. Eu sou a família que nasci, os pais que tive, os irmãos que me acompanham ou acompanharam, a nação que pertenço. Infelizmente, algumas pessoas querem negar ou arrancar aquilo que é dado, herdado.

No entanto, sou uma pessoa que vai se constituindo a partir de suas decisões. O livre arbítrio me possibilita escolher entre isso e aquilo, nas pequenas decisões do dia a dia.  Algumas vezes me deparo com decisões mais sérias e mais importantes. Neste processo, eu vou me construindo como pessoa dotada de uma “liberdade profunda” ou não. A liberdade, no sentido teológico, é a capacidade e a possibilidade de escolher quem eu vou me tornar. Ela é “liberdade de”, diante de coisas e pessoas. Ela é “liberdade para” amar mais e melhor. Ela é “liberdade com”, pois vivemos em família, comunidade e sociedade.

2. A LINGUAGEM BÍBLICA COMO FORMA RICA DE FALAR DO SER HUMANO

A Bíblia chama de “alma” esta pessoa construída pouco a pouco na história. Alma é o ser humano a partir de seu ser, de sua identidade mais profunda, em suas relações dentro do mundo. Espírito é o ser humano aberto à vida dada por Deus. Carne é o ser humano em sua fragilidade. A compreensão de ser humano presente nas Sagradas Escrituras difere profundamente de nossa compreensão herdada da filosofia grega. A Bíblia sempre vê o ser humano inteiro a partir de suas diversas realidades.

Hoje, mais do que nunca precisamos voltar à Escritura, base de nossa fé, para compreender nossa origem, o sentido de nossa existência “aqui e agora” e a grande esperança, nutrida por homens e mulheres durante séculos.

Acreditamos que a Trindade Santa sempre buscou entrar em comunicação com o ser humano. O Povo de Israel foi descobrindo pouco a pouco o Deus que se fazia presente em sua vida, na história, na dor e na alegria através de fatos e acontecimentos. A revelação se dá pouco a pouco diante da capacidade própria do ser humano de percebê-la e compreendê-la. Neste sentido, o Deus Trino é um grande pedagogo.

Deus é descoberto por Abraão e Sara como quem caminha junto com seu povo, se preocupa com terra e filhos, revela-se misericordioso, um “Deus da Promessa” e “Saídas”. Moisés o descobre como o Libertador. Os profetas o verão como Defensor do pobre, da viúva, do órfão e do estrangeiro. O Povo de Israel irá percebê-lo como o Deus Criador a partir da experiência no Exílio da Babilônia. No entanto, na história do Povo de Israel ainda não se tem a percepção da vida eterna e da ressurreição. A morte, simplesmente, é temida e rejeitada, pois põe fim à dança da vida.

Pouco a pouco, Israel vai se dando conta de que a morte não pode ser o fim de tudo. Aquele que tem o poder de “criar do nada” não teria o poder de “recriar”? Como ficaria a justiça divina diante de todos aqueles que viram suas vidas serem consumidas pela maldade, injustiça e opressão (Sb 3,1-10)?

A ideia da ressurreição dos mortos vai pouco a pouco se firmando na consciência do Povo de Deus como fruto de sua experiência e reflexão no encontro com o Deus da vida (2 Mc 7,1-23;.30-36). O que foi se construindo e firmando a pouco a pouco, chega no tempo de Jesus como uma convicção partilhada pelo povo e vários grupos de judeus, com exceção dos saduceus.

A trajetória de Jesus vai revelando não somente o “rosto do Pai”, o projeto do Reino presente “aqui e agora” em forma sinais, o tipo de ser humano que devemos nos tornar, como também a esperança que nutre nosso coração e nosso agir pessoal, comunitário e social.

Saímos da Trindade Santa criados à imagem e semelhança de Cristo (Jo 1,1-18; Col 1,15-20; Ef 1,3-14). Vivemos nossa vida como colaboradores do projeto do Pai e retornaremos ao seio da Trindade Santa. Fomos criados por amor e para amar. Nisto consiste nossa vocação, o sentido da vida humana e nossa salvação. Um amor concreto que, na realidade que nos encontramos, constitui-se como sensibilidade, compaixão e misericórdia pelos pequenos, pelos pobres e sofredores.

Aqueles que foram discípulos e apóstolos de Jesus, que conviveram com o Senhor no tempo de seu ministério público, que participaram de sua morte e fizeram o seu encontro com o Ressuscitado atestam que “Deus é Amor” (1 Jo 4,8). São Bernardo de Claraval, a partir de sua experiência amorosa de Deus, traduz de forma belíssima que o que chamamos de “divindade” não é outra coisa senão o amor profundo, gratuito, incondicional, intenso, excessivo e extensivo do Deus Trino, que inclui toda criatura. “Deus é amor perfeito”.      

3. COMO ENTENDER AS ÚLTIMAS REALIDADES DE NOSSA FÉ?

As realidades últimas de nossa fé – morte, ressurreição, juízo, purgatório, céu e inferno – só podem ser entendidas a partir d´Aquele que é o último e definitivo de todas as coisas: Jesus Cristo[1]. Estas realidades não são meras ilusões ou fantasias, ainda que sejam acessíveis a nós pela fé. Elas estão ancoradas em nossa realidade humana. Já fazem parte de nossa estrutura antropológica. Quando falamos da ressurreição e da vida eterna como Céu já percebemos, ainda que de forma limitada, algo que faz parte de nossa existência.

Quando amamos, temos uma amizade verdadeira, vivenciamos momentos de alegria, satisfação, felicidade, não queremos que acabem. Amor verdadeiro, amizade autêntica, alegria, felicidade, prazer pedem eternidade. Se falamos do relativo, do finito e imperfeito é porque temos alguma experiência do que seja o absoluto, o infinito e perfeito. Tocamos realidades já presentes no “aqui e agora”, mas que nos remetem para além do “aqui e agora”.

O ser humano experimenta um desejo de vida, de ser plenamente feliz e amado sem nenhuma barreira ou obstáculo. Na esperança sabe que mudanças são possíveis e que podemos crescer, mudar para melhor nossa realidade pessoal, comunitária e social.

Portanto, olhando a partir de Cristo como Aquele que tem a centralidade em nossa vida de fé, sem perder sua relação com o Pai e o Espírito Santo, podemos compreender de forma simples as realidades últimas de nossa vida.

Como criaturas finitas, seres biológicos, a morte faz parte de nossa vida. No entanto, Aquele que nos criou tem o poder de nos recriar. A ressurreição é a transformação ou transfiguração deste corpo mortal em um corpo glorioso e espiritual (1 Cor 15). Ressuscitados, encontraremos com a razão e o sentido de nossa vida. O Cristo compassivo e misericordioso virá ao nosso encontro acolher-nos em seus braços ternos. Isto, a Bíblia chama de Parusia, que de forma imperfeita tratamos como “Segunda Vinda” ou “Retorno de Cristo”.

Na nossa trajetória humana tomamos consciência de nossas vidas, de nossas decisões, das consequências de nossos atos, discernimos. No entanto, não vemos claro todas as coisas. A Bíblia chama de Juízo ou Julgamento de Deus a experiência de clareza sobre nós, nossas decisões e relações. Não se trata de um julgamento como em um tribunal humano, baseado em acusações ou absolvições, mas em ver, deixar cair nossas máscaras, esclarecer tudo o que fizemos e vivemos.

Ainda que tenhamos trilhado neste mundo um caminho de conversão, purificação e integração de nosso ser, nunca chegaremos à santidade perfeita. Sempre restará um pouco de maldade no coração humano, imperfeições, traços egoístas. Aquilo que faltar, se estamos no processo de conversão, Deus completará. Este processo é o purgatório.

Se vivemos em “Deus Amor”, amando concretamente de modo especial os pobres, os sofredores e excluídos, passando pela morte e ressurreição experimentaremos o quando fomos amados e viveremos a plenitude de seu amor. Isto é o Céu ou Vida Eterna. Entretanto, como seres livres e autônomos, podemos nos fechar ao seu amor e aos outros, fazendo nossa vida consistir e girar ao redor de nós mesmos. O inferno nunca será o castigo infligido por Deus, mas a possibilidade de se optar por caminhos de violência, maldade, infligindo dor e sofrimento aos demais. Trata-se da possibilidade do ser humano se perder para sempre.

CONCLUSÃO Tomando Jesus Cristo como o centro de nossa vida, podemos dizer o seguinte: O Céu é Cristo, enquanto plenitude do amor e da felicidade. O Juízo Pessoal ou Coletivo é Cristo, enquanto o nosso encontro com Ele (Parusia) nos dá clareza e esclarecimento a respeito do que foi a nossa vida. O Purgatório é Cristo, enquanto aquele que nos converte, purifica e integra o nosso ser. O Inferno é a perda Cristo para sempre por causa de nosso fechamento. São realidades experimentadas “aqui e agora”, ancoradas em nossas vidas, mas que se realizarão de forma plena para além de nossa morte


[1] Para aprofundar: Paulo Roberto Gomes, Da Terra ao Céu. Escatologia cristã em perspectiva dialogal, Paulinas, São Paulo, 2016.

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