Após o Dia Internacional das Mulheres, o que fica?

É oportuno, inicialmente, lembrar que a explicação mais comum sobre a origem do dia 08 de março tenha sido uma greve de costureiras ocorrida em 1857 em Nova York – EU.  Estamos acostumadas a ler nos noticiários e nos boletins de convocação do Dia Internacional das Mulheres a história dessa greve na qual 129 operárias morreram depois de os patrões terem incendiado a fábrica ocupada por elas

Por: Cássia Quelho Tavares, Maria Cristina Furtado e Ivenise Teresinha Gonzaga Santinon

A data do 8 de março, devido a esta greve, está numa publicação feita no Boletim do ano de 1966 em Berlim, da Federação Internacional Democrática das Mulheres, na então República Democrática Alemã.

Mas há escritos que falam em uma confusão feita pelo jornal L ´Humanité e que não cita as 129 mulheres queimadas. Seria uma historinha fictícia que teve origem, provavelmente, em duas outras greves ocorridas na mesma cidade de Nova Iorque, mas em outra época. A primeira foi uma greve de costureiras que durou de 22 de novembro de 1909 a 15 de fevereiro de 1910. A segunda foi a greve da classe operária que aconteceu em 29 de março de 1911, na mesma cidade. Registros apontam que durante um incêndio causado pela falta de segurança nas péssimas instalações de uma fábrica têxtil onde estavam trabalhando 146 pessoas, dezenas de operárias se jogavam do oitavo andar. Dessa ideia se origina uma pista da origem do mito da greve de 1857. Jornais e informativos da época, relativos à classe trabalhadora, citam nesse ano a existência de outras mortes de mulheres nas fábricas, sendo a maioria imigrantes judias e italianas.

Portanto, como todo mito, o dia 8 de março seria simbólico e teria uma razão maior para a sua comemoração: uma combinação de casualidades, de fatores reais sem plano “diabólico” pré-estabelecido, mas com uma agregação de valores na luta das mulheres norte-americanas. Como nascem todos os mitos, seria uma junção de fatores para um significado de um contexto opressor, de motivos históricos políticos, ideológicos, religiosos, econômicos, entre outros.

Pouco a pouco, esse fato de 1857 foi se consolidando e em 1970, o mito das mulheres queimadas vivas foi firmado como um dia a ser comemorado, com milhares de americanas participando de manifestações contra a guerra do Vietnã e com um forte apelo feminista, em Baltimore, EUA, é publicado o boletim Mulheres-Jornal da Libertação.

Na França, o jornal de 8 de março de 1977 em “História d´Elas”, publicado em Paris, alertava para uma mistura de datas e dados e disse, após longas pesquisas, que nada havia encontrado sobre a greve de 1857 em Nova Iorque.  Em 1977, a Unesco oficializa o Dia em homenagem às 129 operárias queimadas vivas e em 1978, o prefeito de Nova Iorque, na resolução nº 14, de 24/1, reafirma o 8 de março como Dia Internacional da Mulher, a ser comemorado anualmente.

Mas como o que importa é a força simbólica desse fato e de outros tantos que marcam as narrativas a partir de movimentos e lutas de mulheres, sejam elas bíblicas ou não, fatos comprovados ou não, esse fato até hoje nos remete a importantes razões e significados sociais, políticos e religiosos.

Sabe-se que um grupo de historiadoras francesas, coordenadas por Francoise Picq, resolveu pesquisar esse mito das costureiras e sequer encontrou pista concreta da existência dessa greve, muito menos da relação com o Dia Internacional da Mulher. Deduz-se que a comemoração desse dia começou como expressão simbólica de marchas de resistência e de lutas de trabalhadoras injustiçadas na sociedade local. Poderia se comparar com narrativas bíblicas da fé cristã, expressas em celebrações do calendário litúrgico cujas mensagens abordam a esperança e, em caráter utópico, trazem novas expectativas de vida. Portanto, essas narrativas ao serem comemoradas, sejam elas religiosas ou profanas, públicas ou privadas, devem trazer um certo alento às pessoas.

            No caso do Dia 08 de Março o que importa é lembrar no percurso das mulheres trabalhadoras em meio da sociedade patriarcal que as exclui dos direitos universais e que ao reivindicarem o direito ao voto e ao trabalho em 1848, percebiam que, para conquistarem espaço público de trabalho, precisavam também transformar a divisão de gênero nas respectivas funções. Assim, as mulheres em todos os espaços trabalhistas, sejam públicos ou privados como é o caso de instituições religiosas, começaram a resistir diante das discriminações e buscavam galgar novas funções até então reservadas a homens.  

Nota-se, entretanto, que em quase todos os setores sócio-político-culturais e religiosos vem sendo ressaltado atualmente a importância do papel das mulheres e a necessidade do exercício da sua função de forma igualitária, e os avanços têm acontecido nos mais diferentes cenários. Comparando com outros setores de nossa cultura ocidental, nos âmbitos religiosos ainda se nota uma “defasagem” nessas conquistas.

Houve inegavelmente avanços, mas nem todos colaboram para que aconteça a efetiva inclusão e a ascensão das mulheres. Concretamente, existe ainda um largo espaço a ser conquistado e, por isso, comemorar o dia 08 de Março significa ter que abrir portas às mulheres para que não haja tantas divergências entre a teoria e a prática religiosa, entre o discurso e a atitude de muita gente em meio às políticas hegemônicas nessas instituições.

No caso da Igreja Católica isso pode ser percebido que não é motivo de tanta comemoração, principalmente nas pastorais e nos ministérios em geral. Apega-se a uma visão de feminilidade e masculinidade, de atribuições de trabalhos distintos para homens e mulheres, o que de certa forma distingue a autoridade de homens clérigos e a submissão de mulheres e homens leigos. E isso continua fazendo dela uma instituição hierárquica predominantemente patriarcal e branca.

O Documento da Conferência do CELAM de Aparecida (2007) aponta que as mulheres são a maioria na Igreja, as quais em muitos casos coordenam pastorais nas comunidades e ali buscam encontrar um sentido realmente cristão, inclusivo e igualitário, frente as iniciativas e as decisões nas ações evangelizadoras. Elas ocupam espaços e estabelecem vínculos permanentes de poder, mostram a sua capacidade e o seu poderio, pois conhecem como ninguém os sofrimentos das pessoas, sejam em espaços reais ou virtuais. Elas vão para além do espaço de poder de padres e bispos.  Em meio às comunidades, onde aparece mais a desigualdade social, as mulheres se sobressaem e são fraternas e facilitadoras

Como o tradicional mito das costureiras, essa condição demonstra um caráter opressor e sofrível na vida das mulheres, pois elas não conseguem plenamente mostrar a sua capacidade ao não ser considerada igualmente como os homens. Essa incapacidade de se viver a igualdade proposta pelos Evangelhos, num continente cristianizado, torna-se tal prática incoerente com a mensagem de Jesus Cristo. Nele, S. Paulo (Gl 3,28), mostra que a desigualdade foi anulada: “não há grego ou romano, homem ou mulher, escravo ou livre”.

Assim, relembrar continuamente a data do Dia Internacional da Mulher deve ser um momento que traga à tona uma reversão dos papéis injustos e das funções que exercemos nas estruturas, entre elas as religiosas. Ao se expressar em formas narrativas ou celebrativas, os fatos do nosso cotidiano devem ir além das homenagens, aplausos, mensagens. É necessária uma retomada de consciência que exige de nós a insistência e a determinação pelas mudanças.

Em tempos obscuros, ao se comemorar o dia 08 de março, deve-se ter em mente a mensagem que nos foi deixada por Jesus Cristo ao ser alertado por Maria que o vinho tinha acabado. Como ele, deve-se hoje saber transformar água em vinho nos vários momentos em que a vida pede novas tomadas de decisões em favor da igualdade e da justiça. Esse e outros dias do ano nos pedem que, após as tantas comemorações em homenagem às mulheres, todas as samaritanas sejam acolhidas sem medo e as Madalenas sejam respeitadas por terem a força que vem da igualdade no Cristo. 

Cássia Quelho Tavares, Maria Cristina Furtado e Ivenise Teresinha Gonzaga Santinon (Diretoras do Centro de estudos de Gênero, Diversidade sexual e violência. https://centrodeestudosgdsv.com.br/)

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