Da santidade cotidiana à Festa de Todos os Santos

A Igreja desde os primórdios de sua história celebra os seus santos, “homens e mulheres que com a sua fé, caridade, e com a sua vida foram faróis para tantas gerações, e são-no também para nós” (BENTO XVI, 2011, p. 1).

Por: Emilio Petri de Souza

Ao longo do Ano Litúrgico, a Igreja celebrando seus mártires e santos nos oferece a oportunidade de aprendermos a conhecê-los mais de perto, a partir da celebração do mistério pascal na liturgia, já que a celebração dos santos não deve ser desvinculada de tal mistério, pois, a Igreja “celebra neles a realização do mistério pascal de Cristo” (AUGÉ, 2019, p. 303).

A Igreja vive nos últimos tempos uma rica estação de canonizações e beatificações. Fatos estes, tornam atual o tema e seu debate não só no meio religioso, mas, superando tal limite atinge a sociedade como um todo, despertando o interesse de crentes e não crentes quanto a santidade e o que permeia a vida destes homens e mulheres que agora ganham os altares. É certo que, os tantos santos e beatos proclamados nas últimas décadas, são sinais de uma de uma viva “catolicidade” alcançada por um verdadeiro testemunho cristão (BIANCHI, 2019).

A canonização de Santa Dulce dos Pobres para nós brasileiros, e atualmente a beatificação do jovem leigo italiano Carlos Acutis, enche-nos de vibrante alegria ao passo que também desperta uma dada inquietação em nosso interior, pois, percebemos que a santidade não é algo velho e ultrapassado, vivida apenas a séculos atrás, mas, mostra-se atual e viva no meio de nós em pleno século XXI, como se pode ver na Bem-aventurada Virgem Maria, em Santa Dulce dos Pobres, no Beato Carlos Acutis, e em tantos outros que nas últimas décadas foram proclamados santos e santas, beatos e beatas.

Tal inquietude gera-nos questionamentos: será mesmo possível ser santa ou santo nos tempos atuais, em meio a uma sociedade corrompida por tantas injustiças? O que estas mulheres e homens realizaram ao longo da vida, que os levou a santidade? Como podemos percorrer o caminho da santidade? Podemos percorrê-lo sozinhos? O que significa ser santo? Estes e inúmeros outros questionamentos povoam nosso íntimo quando nos colocamos frente a vida dos santos, porém, tais inquietações nos levam a reconhecer algo em comum na vida destes, um ponto de partida, um início que é base a sustentar esta plenitude de vida, Jesus Cristo.

Desde os primórdios da Igreja a santidade é entendida a partir dos méritos de Cristo, é o ícone, a imagem de Cristo. Padre Marko Ivan Rupnik em homilia no ano de 2018, pela Festa de Todos os Santos nos fala que: com sua santidade, Cristo, desenha sua humanidade como homem que vive sua própria humanidade a partir do Lógos, segundo o Verbo, segundo a Palavra do Pai. Homem que vive a humanidade de Filho de Deus. Todo batizado é filho de Deus, devendo assim, viver sua humanidade segundo a santidade, atentos ao apelo que o Senhor nos faz: “Sede santos, porque eu sou santo” (1 Pedro 1:16).

Rezamos na Oração Eucarística II que, “Deus é santo e fonte de toda santidade”. Em seu grande desígnio, Deus em Cristo “escolheu-nos antes da criação do mundo para sermos santos e imaculados diante d’Ele na caridade” (Ef 1,4), Cristo está no centro do desígnio divino, no qual Deus revela seu rosto. Em Cristo o Deus vivente tornou-se próximo, visível, audível, palpável para que todos possam beneficiar da sua plenitude de graça e de verdade, por isso, toda a existência cristã conhece uma única lei suprema, Jesus Cristo (BENTO XVI, 2011).

A santidade é a plenitude da vida cristã, ela consiste em nossa comunhão com Cristo, “em viver os seus mistérios, em fazer nossas as suas atitudes, pensamentos e comportamentos” (BENTO XVI, 2011, p. 2). Só podemos verdadeiramente ser santos, quando nossa humanidade consegue comunicar e manifestar ao próximo a vida de Cristo, o seu modo ser. Quando esta manifestação habita em nós e revela Cristo ao outro, que lhe fala, toca, consola, ama, lhe atinge em sua humanidade (RUPNIK, 2018). Assim, “a medida da santidade é dada pela estatura que Cristo alcança em nós, desde quando, com a força do Espírito Santo, modelamos toda a nossa vida sobre a sua. É ser conformes com Jesus” (BENTO XVI, 2011, p. 2).

Uma vida santa não se dá por meio da individualidade. Não é fruto do nosso esforço. Pensar a santidade como mérito próprio é ocultar a Boa Nova que é Cristo, não deixando-a transparecer em toda sua plenitude cuja fonte é o próprio Deus, arriscando-se assim, cair num moralismo. Não podemos institucionalizá-la, pois, o mistério da relação do amor não pode ser institucionalizado, é gratuito. Não pode ser vista sob a lente da perfeição ética e moral, pois, não é uma realidade individual. O santo não é um herói, mas, “são propostos à inteira comunidade cristã como as pessoas que souberam viver em plenitude o mistério pascal de Cristo, e, portanto, nesse sentido, tornaram-se modelos de vida cristã e validos intercessores do povo de Deus” (AUGÉ, 2019, p. 315), intitulados pela patrística como “amigos de Deus” (BIANCHI, 2019).

A santidade humana é compreendida somente por meio do Espírito Santo. Alerta-nos RUPNIK (2019), que o Espírito Santo é o protagonista da santidade humana, pois, é por meio D’ele que o homem participa da vida do Pai, em seu Filho – Jesus Cristo – que o faz participar da vida filial, dom do Pai. É o Espírito Santo que nos faz conhecer a Cristo, e Cristo só pode ser conhecido de dentro, ou seja, participando de sua vida, e participando por meio de nossa adesão, de nossa conversão. Participar da vida de Cristo é fazer parte de seu corpo místico, é viver a comunhão dos santos, comunhão esta que é eucarística e eclesial, pois estamos unidos com toda a nossa humanidade por Cristo, com Cristo e em Cristo para viver o amor.

Estar aberto ao derramamento do Espírito Santo é estar aberto ao amor, assim, viver a comunhão dos santos só é possível quando o amor passa por nós, e o amor só passa por nós quando amamos. Dessa forma, a santidade não está limitada somente a pessoas que realizaram empreendimentos extraordinários, mas sim, está naqueles que souberam e sabem amar, pois, “o primeiro dom e o mais necessário é a caridade, com a qual amamos Deus acima de todas as coisas e ao próximo por amor a Ele” (BENTO XVI, 2011, p. 3). Desponta aqui, um imensurável número de santos e santas, homens e mulheres de todas as idades, que em seu cotidiano assumem a graça do seu batismo, marcando sua história de vida, família e de comunidade com a santidade. Revelam por meio de um testemunho vivo e verdadeiro, Cristo, a humanidade.

Quando encontramos uma pessoa que nos manifesta uma humanidade bela, livre e verdadeira, marcada por gestos de amor resplandecendo a beleza do rosto de Cristo, dizemos que já não é ela que vive, mas o próprio Cristo. Desta forma, o santo é a manifestação do Cristo e da comunhão com o próximo, não é a vitória da individualidade, pois, todos juntos cantaremos um canto novo (Ap 7, 9-10). O Papa Francisco afirma que “A santidade é o rosto mais belo da Igreja, mas, mesmo fora da Igreja Católica e em áreas muito diferentes, o Espírito suscita sinais da sua presença, que ajudam os próprios discípulos de Cristo” (FRANCISCO, 2018, p. 5), assim, os santos são uma multidão de várias línguas e nações (Ap 7, 9) que “participam também da função profética de Cristo, difundindo o seu testemunho vivo, sobretudo pela vida de fé e de caridade” (FRANCISCO, 2018, p. 4).

O amor distingue os santos. Assim, fujamos da ideia de tratá-los meramente no âmbito da espiritualidade, da devoção pessoal, individual, e do aperfeiçoamento moral. Não busquemos ser como eles, mas busquemos conhecer suas vidas e nos deixemos inspirar por elas ao nosso tempo de viver a santidade. Tenhamos nas bem aventuranças o caminho para uma vida plena, onde a felicidade não se encontra exterior a nós, em nosso desejos frustrados, mas sim, dentro de nós, pois a chave para acolhermos uma alegria autêntica está na acolhida da vida nova, vida de filho de Deus em Cristo segundo o Espírito. Uma vida de comunhão. Celebrar a Festa de Todos os Santos, é olhar para nossa caminhada cotidiana, eclesial, e fazer opções que nos comprometam com o Reino de Deus, pois delas dependem a nossa felicidade (BORTOLINI, 2007). Que Deus nos ajude a enxergar as santas e santos que estão ao nosso lado nesta caminhada.

Bibliografia

AUGÉ, Matias. Ano Litúrgico: É o próprio Cristo presente na sua Igreja. Paulinas. São Paulo, 2019, p. 303-324.

Bento XVI, Catequese (Audiência geral, 13 de abril de 2011).

BIANCHI, Enzo. I frutti dell’amore: Commento al Vangelo di Tutti i santi. 2019.

BORTOLINI, José. Roteiros Homiléticos: Anos A, B, C, Festas e Solenidades. Paulus. São Paulo, 2007, p. 784-791.

Francisco, Exort. ap. Gaudete Et Exsultate (19 de Março de 2018).

RUPNIK, Marko Ivan, Omelia: Tutti i Santi (01 novembre 2018) pubblicata in formato AUDIO sul sito LIPA (www.lipaonline.org)

RUPNIK, Marko Ivan, Omelia: Tutti i Santi (27 ottobre 2019) pubblicata in formato AUDIO sul sito LIPA (www.lipaonline.org)

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