Era de linhagem sacerdotal, mas preferiu não sê-lo.

Entre os nossos santos, João Batista tem destaque especial. O povo, tem na pessoa de João a alegria sem fim do anúncio da novidade, da acolhida, da aurora, da chegada, da véspera.

Por: João Marcos

Esses sinais vêm do olhar cuidadoso que as pequenas comunidades têm ao se aproximar dos evangelhos[1] e perceber que João é como o cheiro fresco da terra molhada, que chega antes mesmo da chuva. Ele é o que anuncia e prepara os caminhos para a chegada do Senhor.

O contexto sócio-político que lhe circulava, era complicado. Dentro do modelo imperial, Roma dominava o território que se localizava as costas do mediterrâneo onde João vivia. A cultura, os militares, os impostos, a religião, a administração, era tudo muito bem orquestrado por Cesar Augusto. O povo já não aguentava mais de tanto desgoverno, de sofrimento, escravidão, opressão, perseguição e extermínio.

                A escuridão era sem fim, como uma noite sem luar. Mas, eis que surge a testemunha da Luz, o jovem pobre, do povo. Ele, que era da linhagem sacerdotal, mas preferiu não ser, na sua simplicidade, no seu protagonismo, anuncia que uma grande luz está chegando para iluminar todas as trevas[2].

O anúncio do Novo Projeto

                A comunidade do evangelista Lucas, narra para nós o nascimento do menino João e na narração aparecem dois elementos essenciais. O primeiro é que Isabel já estava idosa e ainda não tinha filhos por ser estéril. Isso, com certeza, causava estranheza diante das comadres e de toda a vizinhança. O segundo elemento é que o pai, Zacarias, fica mudo, sem fala. Esses sinais querem nos revelar que Deus está atento as realidades de exclusão.

Então ele escuta, vê, e vem[3] mudar essas realidades. Torna fecundo o que estava sem vida, e abre as bocas dos silenciados, e deles/as nasce a profecia[4]. Assim o nascimento de João é mais do que o nascimento de um menino, é o broto de novo sonho que rompe a terra seca, e junto com as primeiras folhas anuncia o novo projeto. Capaz de gerar mudanças extraordinárias, de transformar as realidades de morte em vida, exclusão em inclusão, tudo em uma festa sem fim. Projeto conduzido pelas mãos de Deus[5].

                Nos registros da comunidade de Mateus, João surge no deserto, entre o rio Jordão e a terra prometida. Este lugar é um convite de fidelidade ao Código da Aliança[6] apresentada pelo/as romeiro/as que se libertaram da casa da escravidão[7]. É preciso mergulhar, banhar-se, encharcar-se das águas da memória da libertação, se colocar em caminhada e mudar a lógica imposta pelos novos sistemas escravocratas. O cântico das comunidades do sertão nós faz rememorar que “o povo de Deus no deserto andava”. E que, até hoje, nós fazemos parte desse povo. Todos e cada um, já que eu “também sou teu povo Senhor, e estou nesta estrada”. Esse processo é permanente. João é o personagem que interliga os tempos, a primeira e a segunda aliança, o compromisso eterno de Deus com seu povo.

                No deserto, o projeto do Reino de Deus é anunciado pelo profeta. E, ali, João mobiliza seu grupo, que tem como missão a conversão. Deserto é lugar propício de olhar para dentro, de sentir e ver as realidades, de julgar as condutas e planejar a mudança de vida. Jesus vai ao encontro de João e se propõe a fazer esse itinerário.

                João e Jesus têm clareza de que para que o Reino aconteça é preciso reatar a fidelidade pessoal e a fidelidade coletiva à aliança. E, por isso, Jesus se insere na história da salvação sendo discípulo do profeta. O caminho que nos leva a ser verdadeiros discípulos/as é o da profecia.

                Diante da realidade que nos circunda atualmente, é essencial ir até o caminho profético apresentado por João. O percurso é ter como fundamento a espiritualidade libertadora, que denúncia a injustiça tendo em vista a construção do mundo novo. O primeiro passos é analisar a conjuntura e iluminá-la com as experiências da caminhada, ou seja, nos colocar no caminho do deserto do existir.

É preciso encontrar os riachos das águas da memória-liberdade e se permitir penetrar, laçar-se na utopia do Reino. Nesta perspectiva, creio que devemos repensar as celebrações de nossos batismos para que deixem de ser apenas um rito prescrito, eventual, e se tornem um processo, uma caminhada tendo como seta o evangelho da aliança definitiva, tornando o viver um sacramento infinito.

Dia desses visitei dona Almira, da pequena comunidade Gengibre, no sertão de Ribeirão Cascalheira – MT. Ela relatou as inúmeras vezes que os grileiros, o governo, a polícia, os fazendeiros tentaram retirar sua família da terra. Muitas vezes, usando violência, queimando a casa, as plantações e matando os animais. Mas, concluiu: “o que me fez criar resistência foi lembrar que Deus criou cada um para ter lugar, direito e dignidade”. Entendi que aquela mulher, benzedeira, da roça, fez (e faz) caminhada no deserto da vida. 

João Batista, o profeta da ecologia do povo

Olhar para vida do povo e perceber o Evangelho se atualizando, a partir das experiências que a própria vida proporciona, é de fazer os olhos brilharem. O povo sempre usa suas inteligências, suas memórias para garantir o viver.

Tive a alegre experiência de ser criado e crescer no assentamento de reforma agrária São Bento, no município de Heitoraí – GO, as margens do Córrego Seco. Os/as antigos/as da região lembram que o nome do córrego deve-se ao fato de que há muito tempo ele secou e a vida ficou muito difícil. Era preciso buscar água no rio Uru de carro de boi, distante da região. E neste sofrimento uma senhora fez uma promessa a São João Batista: se as águas do rio voltassem a correr, ela, durante sete anos, iria fazer uma novena em homenagem ao santo e distribuir doces para todos os presentes, como gesto de alegria.

Como São João é um santo poderoso, naquele mesmo ano águas correram para a alegria dos animais e do povo todo, e para a alegria ficar maior, a festa aconteceu durante os sete anos. Completado o tempo da promessa, a senhora ficou com medo de o santo ficar chateado e parar de interceder a Deus pela água do córrego e decidiram continuar com a festa. Anos depois, a senhora faleceu e, no próprio velório, aproveitando a comunidade reunida, os moradores da região decidiram que a cada ano uma família iria realizar o festejo. E assim tem acontecido, com muito doce e muita água.

Percebendo que a solidariedade, a fartura, o aconchego das festas do sertão reúne mais gente do que a festa da paróquia, a Igreja (instituição, padre, bispo) decidiram ir até a festa da roça e proibir a realização dela. Mas o povo, sem pensar duas vezes, se manifestou e nem deixou terminar o discurso: “se parar a festa, a água vai secar com certeza”; “não podemos quebrar o nosso compromisso com o santo”; “se a água para de correr, o bispo e o padre não vão vir aqui buscar agua para nós”; “Com São João não se brinca”. Para meu povo, João é o santo da água, da fartura, da abundância.

João, o Batista

Quem faz experiência de deserto, sabe que água é elemento essencial para o viver. A água tem em si a expressão do sagrado[8]. Ela lava, purifica, refresca, alivia, enche de vida. O profeta Ezequiel nos anunciou a promessa de Deus: “Eu vos recolherei de todos os países e vos levarei para a vossa terra. Derramarei sobre vós uma água pura e ficareis purificados; de todas as vossas impurezas e sujeiras eu vos purificarei. E vos darei um coração novo e infundirei em vós um espírito novo”[9]. O batismo apresentado por João é mais do que um sinal de conversão. É a acolhida do perdão de Deus, sinal da fidelidade, cumprimento do amor.

As comunidades cristãs sempre tiveram o batismo como porta de entrada, imersão da pessoa no mistério de Cristo[10], participação na aliança. O batismo é o sacramento que nos enxerta no corpo de Cristo e nos insere, a todos, na comunidade como irmãos. No rito, a comunidade acolhe e proclama a dimensão do batismo para a vida do novo integrante, ele/a é conhecido/a como Profeta/Profetiza, Sacerdote/Sacerdotisa e Pastor/Pastora.

Vida pelas vidas

O assassinato de João acontece na festa do banquete da morte (Mc 6.14-29 e Mt 14.1-12). Os poderosos, reunidos para se divertir, brincam com a vida e, assim, geram a morte. O profeta é silenciado brutalmente e, na dimensão da missão de percursor, já anuncia o martírio de Jesus. O discípulo e o mestre têm suas semelhanças. Que se coloca a caminhar agrega na história da sua vida as histórias das vidas de quem está no caminho.

A dimensão do martírio na construção da páscoa diária é consequência do caminho profético. E os seguidores do caminho têm consciência disso. Um exemplo é a experiência que o bispo Pedro Casaldáliga tem com os povos do Araguaia: de tanto caminhar para construir dignidade, esse povo fez Pedro perceber e declarar que “as causas valem mais do que a própria vida”.

João Batista deve sintetizar as nossas vocações. De ser povo sacerdotal, profeta, comprometido, acolhedor, capaz de analisar e modificar as conjunturas e, em especial, de ser testemunha do Reino.

BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2002.

PAGOLA, José Antonio. Jesus: aproximação histórica. Trad. TITTON, Gentil Avelino. 6. Ed. Petrópolis: Vozes, 2013.

CNBB. Doc 107, Iniciação à vida cristã: itinerário para formar discípulos missionários. Brasília: Edições CNBB, 2017.


*João Marcos é jovem, leigo, professor, agente de pastoral na Prelazia de São Felix do Araguaia, especialista em liturgia e Bíblia, e estudante de teologia.

[1] Mateus, Marcos, Lucas e João.

[2] Cf. Jo 1, 6-9.

[3] Cf. Ex 3, 7-8.

[4] Cântico da Zacarias, Lc 1, 67-80.

[5] Lc 1, 66 e (Sl 143).

[6] Cf. Ex 20, 1-17.

[7] Egito.

[8] O espírito pairava sobre as águas desde a criação do mundo (Cf. Gn 1.2)

[9] Ez 36, 24-26

[10] CNBB. Doc. 107, n. 130.

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