O mito da democracia racial

“já não há judeu nem grego, nem escravo nem livre…, pois todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gal 3, 28).

Por: Alexandre Pinheiro Tenorio

O Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão. Promovemos essa chaga por 350 anos seguidos. Se um só dia de escravidão já seria muito, que dirá 3 séculos e meio…

Cabe reconhecer o enorme esforço e mérito de muitos personagens e grupos abolicionistas da época e dos próprios escravos que valentemente se opuseram à opressão, pagando muitas vezes com a própria vida. No entanto, não podemos desconsiderar que a libertação dos escravos, segundo muitos estudiosos do assunto, antes de ser uma tomada ética de consciência social do país, foi mais uma maneira de atender ao mercado – sempre ele – que clamava por novos consumidores a fim de impulsionar uma indústria nascente da nova ordem econômica e social, com a escravidão ficando mais cara do que os imigrantes europeus.

Razões e motivações, no entanto, importam menos hoje ao se verificar que escravidão permanece ainda de outras formas, 132 anos após a abolição. Continuamos a pagar o preço dessa dívida histórica. A população liberta continuou relegada à própria sobrevivência e as senzalas e as correntes de hoje possuem outros formatos, mas são igualmente danosas. A Estação Primeira de Mangueira retratou bem em um dos seus carnavais quando em seu samba profetizava: “livre do açoite da senzala, preso na miséria da favela.”

Há quem diga que não há racismo no Brasil porque somos um país miscigenado e com democracia racial. A realidade, no entanto, desmascara esse argumento e a transforma mais em hipocrisia racial. O deplorável racismo não só existe, mas é também estrutural, seja na organização social e estatal, seja no inconsciente coletivo brasileiro.

Muitas vezes o racismo é implícito e sutil. Está presente nas brincadeiras de mau gosto com os amigos negros, nas piadas racistas e nas gírias infâmias, supostamente inofensivas, no uso dos elevadores, na preferência dos casais na fila da adoção, nas blitz policiais, no uso preconceituoso das palavras do português (a situação está negra…) e nos próprios eufemismos de maneira envergonhada ao nominar os negros de “moreno”, “mulato”, “de cor”, “escurinho”. Justamente por ser sutil e impregnado de maneira subliminar é que é tão difícil de ser combatido. Hoje em dia falamos o dia inteiro da atual virose, mas esse racismo sutil também é uma espécie de vírus, palpável no sofrimento da população negra, mas invisível pela desfaçatez e sutileza e é aí que reside o mito da democracia racial e do negacionismo da discriminação.

Talvez todos esses argumentos não sejam suficientes para convencer de que somos tristemente um país racista, pois muitos podem alegar subjetividade. Passamos então a olhar a realidade pelos números, que muita gente adora apregoar como sendo eloquentes e infalíveis. Deixemo-nos convencer pelas evidências da organização social. É escandaloso o paradoxo de que os negros e pardos somam 50,7% da população brasileira segundo o último censo do IBGE, mas há uma escassa representação dessa maioria nas representações políticas, nos cargos de liderança nas organizações empresariais, nas universidades, nos escalões da magistratura, na hierarquia da Igreja. Completa esse paradoxo o cenário inverso, já que os negros e pardos são 75,2% dos 10% de brasileiros mais pobres, 75,5% das vítimas de homicídio segundo o Atlas da Violência de 2019 e compõem a imensa massa dos trabalhadores informais ou subempregados e da população das periferias das grandes cidades, onde enfrentam as condições adversas de trabalho e transporte diariamente nos trens da Central do Brasil e de tantas outras cidades brasileiras. É só olhar para o lado e ver à nossa volta. A realidade se impõe à opinião. Temos uma teia social amarrada e quando alguém rompe esse patamar, serve de exemplo ideológico para se dizer que o sistema em si é bom porque dá a oportunidade para todos, esquecendo-se que o “todos” na verdade é exceção.

Em alguns momentos a sociedade parece tirar a venda dos olhos quando o racismo bate na cara de todos, é explícito e violento, como foi tristemente notado no episódio do assassinato covarde de João Alberto Silveira Freitas por seguranças de um supermercado em Porto Alegre enquanto implorava pela própria vida, na véspera do dia da Consciência Negra, que por ironia do destino foi criado no próprio Rio Grande do Sul nos anos 70 por quatro estudantes universitários. Infelizmente os casos de João Alberto se repetem diariamente pelo Brasil inteiro, quase sempre de maneira anônima e longe dos holofotes da grande mídia.

A reação indignada e justa não tardou. Veio em forma de debates, noticiário, passeatas, até mesmo nesse texto que escrevo. Mas isso só não é suficiente. Como disse recentemente Lewis Hamilton, não basta não ser racista. É preciso mais!

O primeiro ponto de reação da sociedade brasileira deveria ser admitir que temos sim racismo entre nós e não é um fruto de ocorrências isoladas. Esse mal é sistêmico, visceral e estrutural, está escondido debaixo do tapete. Confessar esse nosso pecado social deveria ser o ponto de partida para seu combate através de um enfrentamento honesto e realista. Mais ainda, deveríamos insistir para uma cultura de igualdade racial durante a formação das crianças e jovens, iniciando-se na educação fundamental, com a inserção do tema no currículo escolar e nas atividades educacionais de forma ampla, no país inteiro. Por extensão nas rodas  sociais, nos movimentos e organizações, nas igrejas e nas famílias. É preciso falar sobre isso!

Por fim, porém sem querer encerrar a lista de possibilidades, é preciso uma política de Estado a fim de reforçar e consolidar a adoção de medidas discricionárias positivas, popularmente conhecidas como “cotas” para acesso às instâncias em que a entrada da população negra é virtualmente impedida, como por exemplo (mas não somente) as cotas para ingresso nas universidades, ainda tão questionadas.

A contrariedade de alguns setores sobre esse tema das cotas tem como base o argumento de que elas tratam os cidadãos de maneira desigual, mas vale lembrar da nossa dívida social histórica com a população negra. Não é cabível usar uma estratégia de acesso igual para grupos tão diferentes. As oportunidades nunca serão as mesmas se não criarmos brechas no sistema que fora pensado para manter o status quo. Se assim for, viveremos eternamente um jogo de cartas marcadas. Essas aberturas não vão funcionar se ficarmos dando três toques na porta e pedindo licença para entrar. Algumas vezes, vamos ter que empurrar a porta.

Se não mudarmos esse contexto a partir de nós mesmos, vamos viver de picos em picos de indignação, de muito falatório, de passeatas, até legítimas e boas, mas depois a gente acaba voltando pra nossa vidinha confortável, sentados no sofá assistindo as nossas séries de TV preferidas até que a violência racial ecloda contra alguma vítima de novo e aí corremos o risco de viramos novamente os revolucionários de plantão.

Alexandre Pinheiro Tenorio, leigo cristão católico, membro da CVX – Comunidade de Vida Cristã.

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