A BELEZA É PASCAL

A beleza que atrai, envolve e enamora. Podemos dizer que a vida religiosa, hoje, certamente não é bela, porque não atrai, mas lamenta a falta de fiéis e de vocações. Deve haver algo que não somente deixa de atrair, mas repele, que dá medo. Os consagrados, tanto mulheres quanto homens, radicalmente comprometidos com o homem de hoje, com o bem, trabalham muito, usam de todos os meios modernos e, em tudo isso, a beleza não emerge. “Pessoas boas”, mas não são belas, não fascinam. As boas pessoas são aplaudidas, porém não se vai atrás delas.

Por: Wilma Steagall De Tommaso

O mundo vive uma situação diferente, inusitada, onde nem a experiência dos mais velhos pode ajudar, a frase “já vivi essa experiência” não encontra lugar, o tempo é da angustiante pandemia covid19. Pessoas em quarentena – pânico e medo pelas mortes e informações desencontradas na mídia –, trancadas em casa, clamam por uma solução que parece, a princípio, impossível.

Diante desse turbilhão, o Papa Francisco anuncia a benção Urbi et Orbi, que aconteceu no último dia 27 de março de 2020, em um fim de tarde frio e chuvoso na Praça São Pedro, Vaticano. O porta voz das dores do mundo, um homem idoso, com um só pulmão – perdeu o outro na adolescência em uma grave doença –, com o rosto visivelmente sofrido, caminhou na chuva, ignorando quem lhe segurava um guarda-chuva. O crucifixo que sobrevivera ao incêndio de uma igreja, e que os romanos levaram em uma procissão contra a peste há séculos, pela chuva do momento, parecia chorar.

O ícone milenar e milagroso que fica na Capela Paulina da Basílica Santa Maria Maggiore em Roma, Salus Populi Romani, estava também na Praça do Vaticano nesse momento e, com a proteção de vidro embaçada, “contemplou” por alguns minutos o olhar compassivo do Papa Francisco, que rezava silencioso diante da Mãe de Deus. Sim… O ícone “contemplou”, parece estranho, mas é assim mesmo que a teologia da arte sacra, desde o início na Igreja Una do Primeiro Milênio até 1054, e ainda hoje a Igreja Católica Ortodoxa, vê o ícone: uma janela para o invisível. Pela perspectiva inversa, muito bem fundamentada no século XX pelo russo Pavel Florensky, o ícone não é obra de arte, não é pintado, mas “escrito” por um iconógrafo, homem ou mulher asceta, que além de dominar a técnica, os cânones e a teologia, vive o Evangelho, a Nova Vida anunciada pelo Cristo e faz de suas mãos um pincel para o Espírito Santo realizar seu trabalho. Nesses artistas virtuosos do invisível, há plena consciência de que Cristo não trouxe uma nova religião, mas a Nova Vida, e isso é a beleza. Podemos perguntar, que beleza?

A beleza que atrai, envolve e enamora. Podemos dizer que a vida religiosa, hoje, certamente não é bela, porque não atrai, mas lamenta a falta de fiéis e de vocações. Deve haver algo que não somente deixa de atrair, mas repele, que dá medo. Os consagrados, tanto mulheres quanto homens, radicalmente comprometidos com o homem de hoje, com o bem, trabalham muito, usam de todos os meios modernos e, em tudo isso, a beleza não emerge. “Pessoas boas”, mas não são belas, não fascinam. As boas pessoas são aplaudidas, porém não se vai atrás delas.

Perdeu-se a dimensão cristã de que a Beleza é Pascal. O que significa isso? Vladimir Soloviev, pensador russo do século XIX, nos adverte que “a verdade que não se comunica como beleza é uma ideologia que esmaga as pessoas e o bem que não se realiza como beleza se torna em uma ditadura do bem, um fanatismo moralista, que é o mal”.A beleza é a carne da verdade e do bem. O indivíduo, portanto, nunca pode ser belo ou símbolo porque é mono-estrato, apenas se revela a si mesmo, ou seja, o “eu” que se auto-afirma com a perfeição de suas formas. Não pode fazer surgir o Outro, porque lhe falta a vida como comunhão. Pode ser perfeito, mas não filho de Deus.

A outra palavra para beleza, que os primeiros cristãos amavam, era o símbolo, citado acima. O símbolo era a mesma coisa: uma unidade orgânica de mundos distintos, de tempos diferentes, do humano e do divino, do histórico e do escatológico, uma unidade orgânica realizada em uma pessoa, em Jesus Cristo. Pavel Florensky, o grande gênio e mártir russo já citado, dizia que “o sentido da vida espiritual, de cada ato cristão, é chegar a ser belo”. Ou seja, ser um símbolo que dentro da história abre uma janela ao Eschaton, no culminar de tudo em Cristo. Para o mesmo Pavel Florensky, o testemunho é uma realidade de beleza, porque é simbólico. Foi assim descrito no Evangelho de João, o testemunho consiste em que nos gestos, nas obras, nas palavras, emerja o Outro, o Senhor, “Já não sou eu que vivo, mas Cristo que vive em mim”, diz São Paulo aos Gálatas, 2,20. O testemunho como o eixo da missão da Igreja é viver nossa humanidade como teofania, como revelação da vida de Cristo, da vida do Filho, ou seja, lugar onde Deus ama nossos contemporâneos, na nossa humanidade, não na nossa pretensa perfeição. E os outros encontram, em nosso trabalho, o rosto do Salvador e Senhor.

Por isso, a suprema beleza é Cristo Pascal, porque é a humanidade vivida como uma oferta de si, como suprema teofania. Florensky sintetiza a experiência cristã da beleza na seguinte conclusão: “A verdade revelada é o Amor – Cristo, Filho. E o Amor realizado é a beleza”. A suprema beleza é reservada à Igreja, à comunhão, às pessoas que vivem uma vida que é amor e que se realiza ao modo de Cristo, um modo pascal. Sobre cada etapa da vida cristã há uma epíclese, de modo que continuamente o cristão vive esta unidade com a vida de Cristo e com sua realização. No que acontece sobre o altar, na Eucaristia, se contempla na verdade, a comunidade que a celebra, porque o que verdadeiramente somos é apenas o que somos na Eucaristia. As paredes da igreja “acolhem” o que acontece no altar, na comunidade, imprimem este evento, o absorvem. Por isso, a arquitetura e arte nas paredes se tornam um autorretrato. As paredes da igreja como edifício são a tela na qual a Igreja pinta seu autorretrato. Assim nasce a arte dos cristãos: em uma unidade orgânica com a liturgia e com a vida nova, a vida divino-humana, da humanidade enxertada no Corpo de Cristo.

Dia 27 de março vivi uma experiência única, uma teofania: no grande altar da Praça São Pedro junto ao celebrante, Papa Francisco, ao Cristo crucificado e ao ícone da Theotòkos, a Mãe de Deus, Salus Populi Romani, a humanidade, independente de credo, participou em comunhão espiritual da liturgia e o céu desceu à terra para resgatar a fé, a esperança e o amor a todos por livre adesão.

Wilma Steagall De Tommaso

Doutora em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora no Museu de Arte Sacra de São Paulo (MAS SP). Membro Pesquisadora da Sociedade Brasileira de Teologia e Ciências da Religião (SOTER). Pesquisadora do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.

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