A importância da atuação dos Conselhos Tutelares

Agradecendo a oportunidade de escrever junto a CNLB, preparei uma partilha de algumas experiências vividas no conselho tutelar relacionando com a minha trajetória.

Por: Reinaldo de Miranda Neves

Nessa partilha sobre o papel e a importância da atuação dos conselhos tutelares pelo Brasil, vamos seguir um percurso conhecido por muitos: Olhar para nossa história e compreender alguns princípios do ECA fundamentais para a ação dos conselhos tutelares nos tempos de hoje.

VER: UM OLHAR PARA A HISTÓRIA

Durante minha adolescência e juventude, atuei dentro do movimento estudantil e na pastoral da juventude, relacionei as lutas da vida alimentando com a espiritualidade de seguimento ao Nazareno. Esse tempo de formação e contato intenso com a vida comunitária certamente foram fundamentais para a construção de raízes junto ao projeto de humanização de todas as relações bem como dar dignidade a criação.

A candidatura ao conselho tutelar veio como expressão mais forte do amadurecimento pessoal e comunitário que aprofundou a relação da vida a serviço da comunidade não só nos temas da infância, mas a promoção de um pensamento de cuidado com a vida comum, saúde, educação, transporte, assistência social, moradia e tantos outros assuntos que nossa comunidade se abriu a pensar com mais profundidade.

Passamos um período muito difícil no Brasil durante a ditadura militar e nesse tempo o Estado tratava o tema da infância como algo secundário, quase sempre como um problema. O código de menores se limitava a questão da infância como caso de polícia, impondo um papel do Estado de interventor no seio da família, por vezes rompendo vínculos e histórias daqueles que apresentassem “problemas”, dando até origem a expressão “menor” ou “dimenor” para se referir às crianças e adolescentes, usado muitas vezes de forma negativa, criminalizando nossa infância.

Com a promulgação da constituição federal de 1988, o olhar do Estado para com a infância também precisava mudar. Então o código de menores deu lugar ao estatuto da criança e do adolescente, Lei federal 9068/90, com valores muito diferentes, agora dentro dos pilares das garantias fundamentais de proteção à pessoa humana.

O estatuto da criança e do adolescente, o ECA, foi construído a partir de muita escuta, em um processo de participação, ouvindo as vozes de crianças e adolescente. Uma lei reconhecida mundialmente, contendo dispositivos tais como proteção integral, direitos políticos, direito a participação, que são referência para outros estados nacionais no tema da infância.

O estatuto prevê a criação de um órgão permanente, o conselho tutelar, colegiado formado por cinco agentes políticos escolhidos pelas comunidades para zelar e fiscalizar o cumprimento dos direitos da criança e do adolescente por todos os âmbitos: Estado, família, comunidade e a sociedade em geral, como versa o artigo 131 do ECA. Nas diretrizes nacionais, deve existir um conselho tutelar para cada território com até 100 mil habitantes, sendo os municípios encarregados de organizar tal divisão. 

JULGAR: ILUMINANDO PRINCÍPIOS E VALORES

À luz da constituição cidadã, o valor da dignidade da pessoa humana é espinha dorsal na qual toda legislação infra constitucional deve ter como ponto de partida, submetendo seus dispositivos ao respeito dos direitos fundamentais da pessoa humana. No ECA, o espírito constitucional é corporificado em alguns princípios tais como a proteção integral, a prioridade absoluta e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.

O ECA abre sua redação no artigo 1º destacando que toda lei deve ser compreendida dentro do valor maior de proteção, acolhida, bem viver, à criança e ao adolescente com a mais elevada prioridade. Diferindo do código de menores, o ECA visa proteger nossa infância e não expor ou reforçar violações. Segue no artigo 4ª responsabilizando todos (família, comunidade, sociedade em geral e Poder Público) a assegurar a absoluta prioridade a efetivação de diversos direitos referentes à infância e elenca quatro grandes categorias para se garantir a prioridade à infância, elas são, 1 – a primazia de receber proteção e socorro, 2 – precedência nos atendimentos de serviços públicos, 3 – preferência na formulação e execução de políticas públicas e 4 – destinação privilegiada de recursos públicos para proteção à infância e à juventude. Outro princípio manifestado no artigo 6º é de interpretar todo Estatuto considerando a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.

Sendo o papel principal do colegiado do conselho tutelar atuar dentro do território visando garantir que esses princípios estejam sendo observados, articulando e requisitando os serviços necessários, estabelecendo assim o que chamamos de justiça administrativa de proteção aos direitos humanos de crianças e adolescentes.  

AGIR: AÇÃO JUNTO A COMUNIDADE

É muito importante destacar que o conselho tutelar não tem poder de polícia ou judicial, portanto, o conselho não é “polícia da criança” ou “juiz para condenar adolescentes”. Nossa tarefa é zelar que os órgãos e agentes garantidores dos direitos de crianças e adolescentes executem seu trabalho como prevê o Estatuto.

Qualquer pessoa ao detectar uma violação de direitos ou ameaça a criança ou adolescente pode acionar o sistema de garantias de direitos. Quando uma violação de direitos está acontecendo em flagrante, deve-se chamar a autoridade policial para cessar à violência e acionar o conselho para acompanhar o caso, implementar as medidas necessárias e acionar outros equipamentos públicos quando preciso.

Quando a violação de direitos acontece com frequência, mas no momento não está ocorrendo, pode-se fazer o registro da ocorrência nos casos previstos ou fazer denúncias anônimas pela central nacional de atendimento a violação de direitos, o disk 100.

Atualmente, estou atuando pelo Conselho Tutelar do território de Madureira. Nosso território tem mais de 800 mil habitantes, portanto o trabalho sempre foi desafiador. Com a pandemia e isolamento social os números das denúncias triplicaram no disk 100, que é porta de entrada das violações, saltando de 32 casos no mês de junho de 2019 para 107 casos no mês de junho de 2020 e isso somente no conselho de Madureira, sem contar as demandas de outros equipamentos públicos como judiciário, hospitais, delegacias, CRAS e outros órgãos do sistema de garantia de direitos

Por fim, deixo uma sabedoria antiga de autoria desconhecida,  mas de grande valor, que diz que para criar uma única criança é necessário toda uma aldeia e eu acrescento, com as palavras, que o que próprio estatuto da criança e do adolescente traz em sua redação é responsabilidade da família, do estado e de toda comunidade. É muito importante assumir isso para nossa vida, entendendo que o cuidado comum com a vida e com a criação das crianças e adolescentes é responsabilidade de todos nós, pois tudo está relacionado, não existe fora, ninguém pode estar excluído, tudo está interligado.

Precisamos lançar esse olhar profético dentro de nossas comunidades e mudar a realidade, transcendê-la e, para isso, o primeiro movimento a se fazer é de acolher a realidade sofrida das pessoas da nossa própria comunidade. Uma profunda espiritualidade acolhedora deve ser exercitada como quem acolhe qualquer realidade humana, independente do que aconteceu, pois quanto mais humanas nossas relações mais concreto no meio de nós o projeto divino se realiza.

Depois precisamos cada vez mais exercitar dentro de nossas comunidades o papel das lideranças coletivas, partilhando as tarefas e responsabilidades, procurando cada vez mais as boas referências nesse processo de transformação da realidade. Somos os construtores desse momento novo, da nossa própria história e, se queremos mudar o mundo, devemos começar a mudar nós mesmos. Só depois transformar nossa realidade local, levando assim o movimento para frente.

Precisamos ir ao encontro dos outros e valorizar a pessoa humana e  relações afetivas porque a melhor política é sobre tudo a política da relação apaixonada entre as pessoas na vivência comum, portanto precisamos viver isso com verdade e compromisso.

Nossa tarefa é de ressuscitar a realidade massacrada e morta pelo vírus do individualismo, pelo isolamento egoísta, precisamos ligeiro sonhar em mutirão. Podemos tornar  esse  o movimento de ressurreição, de voltar a viver. Ressuscitar é voltar ao curso já iniciado anteriormente, retornar ao caminho que estava sendo seguido. A ressurreição é a retomada do projeto de Deus e nenhuma força pode impedir a realização do Reino de Deus dentro de nós e no meio de nós. A ressurreição é a semente que se consome em absoluto na terra pra gerar a árvore. Devemos lembrar sempre de olhar para trás, fazer memória e encontrar aquilo que nos dá sentido para caminhar e seguir em frente, levo a força da palavra de Pedro Casaldáliga “Não permitam que nos roubem nossa fiel esperança!”

Amém, Axé, Awerê, Aleluia.

Por Reinaldo de Miranda Neves, Bacharel em ciências, letras e Direito, Conselheiro Tutelar RJ 2020-2023

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