“Amar a Igreja é fazê-la arder»: Três rumos na Igreja para o pós-pandemia”

Há uma parte da Igreja que está essencialmente apegada ao tradicionalismo, torna-se também reacionária, refratária ao diálogo com o mundo contemporâneo, com as pessoas, e por isso continuará a empenhar-se pelo antigo normal – até mais antigo do que possamos imaginar.

Por: D. Joaquim Mol

Esta é uma referência àquelas pessoas que fazem parte da Igreja e que têm negado a reforma em curso do papa Francisco. Não esperemos rumos novos deste segmento. Ele caracteriza-se por três pontos que confirmam a sua inércia.

Primeiro, é uma Igreja que prefere ser “cristianista” a ser cristã. Rémi Brague, filósofo francês, também estudioso de teologia, introduziu esta distinção no livro “Europe, la voie romaine”, da década de 70. Segundo Brague, é mais fácil ser “cristianista” do que ser cristão. Ser “cristianista” significa cuidar das coisas da religião, e ser cristão é cuidar das pessoas.

Este segmento da Igreja não pretende muito mudar porque considera como sua tarefa primordial cuidar das coisas da religião. E não se dão conta de uma coisa muito importante – e aqui, queria lembrar um teólogo jesuíta, González Faus, que usa uma frase de um escritor espanhol, de 1933, imagine-se: «Pobre Espanha católica, que nunca chegou a ser cristã». É uma frase de impacto muito forte. Quando lemos, assustamo-nos.

González Faus sugere que se tire a dose de exagero desta frase, mas deixa claro que prefere ficar com a dose de verdade que contém. Ela ajuda a entender este segmento da Igreja, que é muito reticente a qualquer mudança. E há expressões eclesiais em que Jesus parece estar praticamente ausente. Então, é uma coisa muito complexa.

Esta Igreja assume como sua tarefa a manutenção do clericalismo, o carreirismo, resiste à sinodalidade, à profecia, e também assume como missão a manutenção da doutrina cristã de uma maneira muito fundamentalista, com um moralismo muito forte, enquanto resiste ao discipulado, ao diálogo com a sociedade, uma Igreja mais humana, mais sensível, mais tolerante. Este segmento da Igreja certamente não mudará de rumo depois da pandemia.

Finalmente, há a Igreja na pós-pandemia que poderá mudar os seus rumos para mais. Aqui queria recordar um teólogo pastoralista muito interessante, o P. Pagola. Ele diz que a Igreja precisa de caminhar rumo à recuperação do projeto de Jesus. Acho que o papa Francisco está a dar um primeiro passo.

O segundo passo de reforma será exatamente resgatar o projeto de Jesus na sua integralidade. E a recuperação do projeto de Jesus exige uma conversão ao Deus de Jesus. Não se trata de uma atualização, um “aggiornamento”, uma adaptação, embora isso seja muito necessário. O próprio Cristo, dentro da Igreja, deve ser aquele centro motivador de toda a nossa vida.

Gostaria de encerrar lembrando que temos de amar a Igreja. Ela que, por vezes, não caminha para a frente, mas para trás, ela que, no segundo grupo, deseja mudar os rumos, e no terceiro deseja, ainda mais, mudar os seus rumos.

Lembro, porque me impressiona muito esse grande biblista já falecido, nos “Diálogos noturnos em Jerusalém”, livro-entrevista do cardeal Martini, de 2008, no qual ele revela que lutou muito por uma Igreja mais ousada, uma Igreja da ousadia. Aliás, ele era um homem à frente do tempo.

Quando lhe perguntaram o que Jesus faria se vivesse hoje, Martini respondeu: o que eu acho que uma Igreja que deseja mudar de rumo deveria responder. Jesus, segundo ele, procuraria despertar os jovens para os ganhar para a sua causa, para com Ele transformarem o mundo.
Para transformar o mundo, Jesus buscaria os mais fortes, e estes são primeiramente os jovens. Jesus transformaria os jovens em seus apóstolos.

E em 2012, pouco antes de falecer, deixou gravada uma última entrevista, publicada no dia a seguir à sua morte, dia 1 de novembro, na qual lhe perguntaram novamente: cardeal Martini, como vê a Igreja hoje? E ele, talvez entrevendo já o rosto de Deus, resolveu falar toda a verdade que estava no seu coração.

E disse assim: a Igreja está cansada, na Europa e na América. A nossa cultura envelheceu, as nossas igrejas são grandes demais, as nossas casas religiosas estão vazias, a burocracia da Igreja aumentou, os nossos ritos e os nossos paramentos são pomposos. Estas coisas expressam o que somos hoje. A Igreja ficou 200 anos para trás.

Mas, no final da entrevista, disse: o fundamento da Igreja é a fé, e Deus é amor. Por isso, precisamos de tirar as cinzas de cima das brasas, e precisamos de juntar pessoas – ele diz que aconselhava o papa e os bispos a terem perto de si doze pessoas que não estivessem na carreira eclesiástica – para que soprem as brasas, para que as brasas da Igreja ardam. Amar a Igreja é fazê-la arder.

D. Joaquim Mol -Bispo auxiliar de Belo Horizonte (Brasil), reitor da Pontifícia Universidade Católica – Minas, presidente da Comissão Episcopal para a Comunicação Social
Fonte: Faculdade Jesuíta – Transcrição: Rui Jorge Martins – Publicado em 12.08.2020

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