Dia da Consciência Negra é todo dia!!!

No próximo dia 20 de novembro, no Brasil celebra-se o Dia da Consciência Negra.

Carlúcia Maria Silva[1]

Esta data ganhou maior visibilidade, a partir da Lei Federal nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que alterou as Diretrizes e Bases da Educação Nacional e incluiu no currículo oficial da Rede de Ensino, a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira e a inclusão, no calendário escolar, do dia 20 de novembro, como o dia da consciência negra. Mas o que significa “consciência negra”?

Considerando que o escravismo foi uma experiência histórica crucial para os negros nas Américas e no caso brasileiro, o processo de escravização durou mais de três séculos, celebrar o 20 de novembro nos remete fortalecer nossa consciência histórica, reafirmar a memória e luta dos negros e negras por dignidade, cidadania e reconhecimento. Reconhecer a contribuição de nosso povo ontem e hoje escravizados, herdeiros de uma escravização que ainda não foi de fato abolida.

Consciência negra é reconhecer que tanto ontem, quanto hoje, pouquíssimos são os casos de mobilidade ascendente dos pretos e pardos e mesmo assim, em muitos casos são ainda caracterizados como inferiores social e economicamente. Uma realidade que se faz presente desde o período colonial e escravocrata e que nas nossas cidades, a população negra se encontra concentrada e segregada nas periferias e nos aglomerados urbanos, vivendo em condições de discriminação e precariedade.

Consciência negra é perceber que, com a abolição da escravatura, a população negra foi deixada ao léu e finda a escravidão legal, os negros se mantiveram em situações subalternas tanto nas fazendas, como também nas cidades. Aos ex-escravos não houve nenhum incentivo à educação, nem acesso ao trabalho decente ou à propriedade da terra. Aos abolidos restaram apenas ocupações no setor serviços, trabalhos árduos e fortuitos, menos especializados e de menor remuneração, desprovidos de qualquer possibilidade de mobilidade socioeconômica ou “qualquer possibilidade de cidadania, ainda que incipiente” (MATURAMA, 2011, p. 36.48). E assim, ainda hoje, os pretos e pardos, maioria neste país, se encontram em ocupações informais, precarizadas e mal remuneradas, agravando mais ainda, as desigualdades sociais e raciais que perduram até os dias atuais. O preconceito de raça se soma ao preconceito de origem, demarcando assim, sua condição de trabalhadores precarizados e explorados

O mito da “democracia racial” produzido pelas elites conservadoras e liberais e historicamente sustentado pelo paternalismo e clientelismo foi, e continua sendo, a mais poderosa simbologia integradora, criada para legitimar desigualdades raciais vigentes, desmobilizar e/ou inibir sua organização, mobilização e lutas por direitos e oportunidades. A chamada “ideologia da democracia racial brasileira”, de acordo com Hasenbalg (2005), tem como princípio, dentre outros, negar a presença de discriminação social e racial e em nome da igualdade de oportunidades sociais e econômicas para brancos e não brancos, esta ideologia insinua ausência de preconceito e camufla o conflito de classes e de raças. O preconceito assume uma roupagem de diferença não de raça, mas de classe, e as desigualdades ganham um caráter eminentemente social, sem levar em conta a histórica posição dos negros na hierarquia social.

Ainda relacionando discriminação racial, classe social e mercado de trabalho, vários estudos[1] demonstram que a discriminação racial é perceptível no mercado de trabalho, seja pela falta de acesso ao ensino de qualidade, capacitação adequada ou ausência de habilidades a serem adquiridas ainda na infância e/ou adolescência. A falta de oportunidades[2], além do déficit socioeconômico e educacional demarcam o lugar da subalternidade e um sistema de relações sociais e hierárquicas concretas. Portanto, a inserção precoce e precária dos negros no mercado de trabalho, ainda na infância e/ou adolescência – na maioria dos casos para ajudar no orçamento doméstico demarca sua trajetória profissional em ocupações vulneráveis muitas vezes ao longo da vida.

No cenário atual dos centros urbanos e, em proporção maior ainda nas grandes metrópoles, cotidianamente cruzam nossos caminhos homens e mulheres, em sua maioria, negros ou pardos, que por meio do trabalho precário, constroem estratégias de sobrevivência e alternativas organizativas de trabalho e renda. Homens e mulheres que experienciam no cotidiano a pobreza e a exclusão, não somente enquanto ausência de cidadania e participação distributiva da riqueza, mas também enquanto força de trabalho explorada. Para Silva (2014) este fenômeno expressa uma situação e condição produzida pela sociedade capitalista no processo de acumulação do capital. Nesta reflexão Amartya Sen (2010) aborda um amplo quadro de recursos necessários á dignidade humana, isto é, recursos e oportunidades não somente relacionadas ao sustento e sobrevivência diária, mas também acesso a direitos, liberdades, oportunidades e trabalho decente, entendendo que neles se consolidam as bases sociais de respeito, dignidade e cidadania.

Nesse sentido, Sen (2010) destaca ainda, que para além da renda, liberdade política e liberdade econômica se retroalimentam. Em seu trabalho intitulado “Desenvolvimento como Liberdade” relaciona pobreza de renda e privação de capacidades, chamando atenção ao fato de que a perda da renda, decorrente sobretudo da condição de desempregado, provoca não somente a privação da renda, mas também outros efeitos bem mais abrangentes. Segundo Amartya Sen, os efeitos relacionados à renda poderão ser compensados por meio de benefícios e/ou programas governamentais; os demais, no entanto, se tornam muitas vezes inatingíveis e irreversíveis. Há que se ter em conta também os danos psicológicos e outras consequências, que além de atingir as relações pessoais, sociais e familiares, aprofundam outras situações de violência.

Portanto, celebrar o dia da Consciência Negra nos remete a olhar mais a realidade social que nos cerca e prestar mais atenção nos gritos que ecoam e que se agravam cada vez mais com a pandemia do COVID-19. Que em nossos trabalhos e atividades sociais e pastorais possamos incorporar o lema da 6º Semana Social Brasileira e busquemos superar a realidade do racismo que impende o acesso à terra, ao teto e ao trabalho. E que assim sendo, possamos unir nossas lidas e lutas na construção de uma sociedade mais humana, justa e solidária. E num grande mutirão, possamos incansavelmente lutar contra as raízes das desigualdades e as várias formas de violência que nos cercam, porque todo dia é dia da consciência negra!

 “Vidas Negras Importam!” Debater realidade do racismo estrutural e institucional é preciso! Olhar as feridas abertas que impedem tantos homens e mulheres pretos e pardos a terem acesso aos direitos humanos fundamentais e somar-se aos que acreditam e lutam por “um outro mundo possível” é também ato de fé e compromisso com o Deus da Vida.

Referências

SEN, A. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

GUIMARÃES, A. S. Racismo e antirracismo no Brasil. São Paulo/FAPES, Ed. 34, 1999.

HASENBALG, C. Discriminação e desigualdade raciais no Brasil. 2. ed. Belo Horizonte. Editora UFMG, Rio de Janeiro: IUPERJ, 2005.

KAZTMAN, R. Seducidos y abandonados: el aislamiento social de los pobres urbanos. Santiago de Chile: CEPAL, n. 75, Dec., p. 171-179, 2001.

KAZTMAN, R; FILGUEIRA, C. Marco Conceptual sobre activos, vulnerabilidad y estructura de oportunidades. Santiago de Chile: CEPAL, abr., p. 7-25, 1999.

MATURAMA, Adilson Fornazieri. Negro vende?: a participação afrodescendente nas áreas de vendas. 2011. 174f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte.

SILVA. C. M. Trabalho, cidadania e reconhecimento: a Rede CATAUNIDOS e o protagonismo sociopolítico de Catadores de Recicláveis na RMBH. 2014. 395f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte.


[1] Souza (2003); Guimarães (1999).

[2]Ver KAZTMAN, Ruben; FILGUEIRA, Carlos. Marco Conceptual sobre activos, vulnerabilidad y estructura de oportunidades. Santiago de Chile: CEPAL. Abr. 1999, p. 7-25.



[1] Professora da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG Barbacena), membro da Rede de Assessores do Centro Nacional Fé e Política “Dom Helder Câmara” (CEFEP/CNBB) e da Comissão de Formação do Conselho Nacional do Laicato do Brasil (CNLB). Presta assessoria a pastorais sociais e movimentos populares voltados para a defesa dos direitos humanos e a democracia participativa.

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