Em nome de Deus

A experiência de um Deus sensível à realidade de sofrimento do povo, vivenciada no Êxodo, por um grupo de escravos, é um elemento constitutivo da identidade do povo de Israel. Essa experiência foi vivida, celebrada, contada e recontada.

Maria Antônia Marques

O livro do Deuteronômio retoma a experiência do Êxodo diversas vezes, por exemplo: “Javé, o seu Deus, é o Deus dos deuses e o Senhor dos senhores, o El grande, valente e terrível, que não faz discriminação entre as pessoas e não aceita suborno. Ele faz justiça ao órfão e à viúva e ama o migrante, dando-lhe pão e roupa, Portanto, amem o migrante, porque vocês foram migrantes na terra do Egito” (Dt 10,17-19).

As expressões “o Deus dos deuses” e “o Senhor dos senhores” revelam a existência de outras divindades, exaltando a superioridade de Javé. No reino de Judá, a instituição de Javé como o Deus de Israel como Deus do Estado é um processo que teve início no tempo de Ezequias (728-687 a.C.). Com a destruição da Samaria, em 722 a.C., muitas pessoas migraram para Judá, levando consigo suas tradições. A cidade de Jerusalém teve a sua população aumentada de mil para 15 mil habitantes. É desse período o núcleo mais antigo do livro do Deuteronômio, com as leis centralização vindas do Israel Norte (12-26).

 O rei Ezequias, no desejo de se libertar do jugo da Assíria, apoiado pelo Egito, empreendeu uma reforma centralizadora, tirando as divindades assírias do templo de Jerusalém. O rei instituiu o templo como o único lugar do culto e Javé como o Deus único (2Rs 18,1-7). Em 701 a.C., a Assíria, que estava enfraquecida, restabeleceu seu poder e invadiu Judá, tomando 46 cidades-fortaleza. O rei Ezequias não foi deposto porque ele se submeteu a Assíria. Foi um tempo de muito sofrimento para o povo, especialmente para a população camponesa. Essa crise econômica e social pode ser vista no grito do grupo profético de Miquéias (cf. Mq 2,1-2; 3,1-11).

A reforma de Ezequias foi interrompida pela invasão da Assíria. Após a morte de Ezequias, seu filho Manassés assumiu o poder em Judá (687-642 a.C.). Manassés assumiu uma política de total submissão à Assíria, introduzindo no templo do Jerusalém o culto às divindades assírias: “exército do céu”. Restabeleceu os cultos às divindades nos lugares altos, como Baal e Aserá, juntamente com Javé (2Rs 21,3). Embora a redação deuteronomista condene Manassés como um dos piores reis de Judá por sua infidelidade a Javé oficial, foi um dos reinados mais prósperos e pacíficos. Após a morte de Manassés, seu filho Amon assumiu o trono, sendo assassinado por seus servos (642-640 a.C.). Nesse momento, o momento da terra interveio e colocou Josias no poder (cf. 2Rs 21,24).

No tempo de Josias (640-609 a.C.), a Assíria estava enfraquecida por causa das contastes guerras contra a Babilônia, Josias aproveitou para retomar a política nacionalista de centralização e de Javé como Deus nacional, iniciada por Ezequias, perseguindo e destruindo as divindades cultuadas no reinado anterior: “O rei (Josias) mandou que o sumo sacerdote Helcias, os sacerdotes de segunda ordem e os guardas da porta tirassem do santuário de Javé todos os objetos feitos para o culto de Baal, de Aserá e de todo o exército dos céus. Os objetos foram queimados fora de Jerusalém, no vale do Cedron, e as cinzas foram levadas para Betel (2Rs 23,4).

Com efeito, a eliminação do “exército dos céus” pode ser compreendida como uma declaração da política nacionalista e expansionista de Josias diante da Assíria. Mas a política nacionalista de centralização atinge até a religiosidade popular dos camponeses:  “Josias eliminou também os que evocam os mortos, os adivinhos, os deuses domésticos, os ídolos e todas as abominações que se viam na terra de Judá e em Jerusalém, para cumprir as palavras da Lei escritas no livro que o sacerdote Helcias encontrou na Casa de Javé” (2Rs 23,24).

Josias seguiu os mesmos princípios da reforma deuteronomista de Ezequias (o livro da lei – Dt 12-26) e até radicalizou a centralização do culto a Javé, o Deus nacional, perseguindo a prática religiosa da população camponesa e destruindo os objetos de culto às divindades como os deuses domésticos (terafins).

Nesse contexto é que precisamos ler e situar alguns textos radicais de centralização, como é o caso de Dt 13,7-11: “Se teu irmão, filho de seu pai ou de sua mãe, ou seu filho ou filha, ou a mulher que repousa em seu peito, ou um amigo que você quer como a si mesmo, tentarem seduzir você, convidando: ‘Vamos servir a outros deuses’ (deuses que você nem seus pais conheceram, deuses dos povos que estão ao redor de você, de uma extremidade a outra da terra), não concorde,  nem o escute.

Que seu olho não tenha piedade dele, não use de compaixão, nem acoberte o erro dele. Pelo contrário, você deverá matá-lo, sua mão será a primeira. Em seguida a mão de todo o povo. Apedreje-o até que morra, pois tentou afastar você de Javé, o seu Deus, que o tirou do Egito da casa da escravidão”.

Esse texto desencadeou uma violenta perseguição atingindo a casa e as relações familiares. Qual era o alvo da perseguição? Os cultuadores de outras divindades, que podiam ser Baal, Aserá, deuses da fertilidade da terra, animais e mulheres, bem cultuados pelos camponeses na vida do dia a dia, mas podiam ser também os “deuses domésticos”, o Deus do lar, que sacraliza os laços familiares da casa.

Evidentemente, a proibição do culto às divindades em casa, nas aldeias e nos santuários enfraqueceu a força e a resistência do interior, ao mesmo tempo fortalecendo o controle do Estado sobre o povo para executar a política expansionista e militar, que posteriormente levará Judá à destruição e ao exílio da Babilônia. Era a mesma política expansionista que é criticada por Jeremias, profeta dos camponeses, em nome do Javé popular (Jr 28).

“Apedreje-o até que morra”: O apedrejamento tinha uma dupla significação: por um lado, a pena permitia uma execução coletiva, na qual todos os membros da comunidade deviam sentir-se diretamente responsáveis pela execução da ordem. Por outro, o apedrejamento, conforme a Lei judaica, era aplicado aquilo que ia contra o sagrado, principalmente quando se trata de “idolatria” (Dt 17,5), e o culpado se tornaria intocável e devia ser morto, sem que nele encostassem (Ex 19,13; 21,28; Nm 15,33).

A reforma de Josias utilizava ainda outro meio para fortalecer a centralização do culto: “Apedreje-o até que morra, pois tentou afastar você de Javé, o seu Deus, que o tirou do Egito, da casa da escravidão” (v.11), Em Dt 5-28, texto relido e ampliado no período de Josias, há várias menções sobre a tradição do Êxodo – um total de 32. Além da argumentação das leis sociais, a tradição do êxodo era utilizada para justificar a imposição do Javé oficial, instituído pela corte de Josias (Dt 6,12-13; 13,5-6).

Em Dt 28,58-60 lemos: “Se você não colocar em prática todas as palavras desta Lei escritas neste livro, alimentando o temor a este nome glorioso e terrível – Javé, o seu Deus – Javé ferirá você e sua descendência com pragas espantosas, pragas tremendas e persistentes, doenças graves e incuráveis. Ele voltará contra você as pragas do Egito, que o horrorizavam, e elas se grudarão em você” (Dt 28,58-60). Uma visão contrária tradição do Deus do êxodo, uma divindade sensível ao sofrimento do povo oprimido, que escuta sua voz: “Javé disse: ‘Estou vendo muito bem a aflição do meu povo que está no Egito. Ouvi seu clamor diante de seus opressores, pois tomei conhecimento de seus sofrimentos. Desci para libertá-lo do poder dos egípcios’” (Ex 3,7-8a).

A fé no Javé popular, Deus libertador, morava no coração das pessoas do campo e era invocada, muitas vezes, no sofrimento e nos momentos de crise existencial (cf. Sl 68,2-21).No entanto, a reforma de Josias utilizou e apropriou-se justamente do Deus do êxodo para impor a centralização do culto em Jerusalém. Com a força da imposição, esse Deus deixou de ser a divindade sensível à vida. Pelo contrário, passou a ser usado para perseguir e matar quem não obedecia à ordem do Estado, instalando o terror e o medo: “Sabendo disso, todo o Israel ficará temeroso e nunca mais se fará em seu meio ação assim tão má (v.12).

Atenção: “deuses que nem você nem seus pais conheceram, deuses dos povos que estão ao redor de você, próximos ou distantes de você, de uma extremidade à outra da terra” (v.7b-8): o texto é acréscimo do pós-exílio, momento em os teocratas expulsaram os estrangeiros em nome de Javé oficial, o Deus único, e condenaram suas religiões e culturas (cf. Ne 13,23-27).

Na Bíblia há muitos textos que incitam e legitimam a violência contra outras religiões. Eis alguns exemplos no livro do Deuteronômio: 7,1-6; 12,2-3; 18,9-12; 23,18. Esses textos foram elaborados para garantir o projeto de centralização dos reis, no tempo da monarquia de Jeroboão II, Ezequias e Josias, ou o poder do governo dos teocratas, no pós-exílio, entre 450 e 350 a.C.

Uma leitura fundamentalista desses textos justifica ataques contra outras práticas religiosas. Há diversas experiências de Deus. O Deus revelado em Jesus Cristo é uma experiência religiosa que dá sentido para muitas pessoas, mas há outras experiências religiosas que são a base para a vida de outras pessoas. Penso que deveríamos “calçar os sapatos de outras pessoas” e tentar responder: como nós nos sentimos quando vemos nossos símbolos sagrados sendo desrespeitados e negados?

Pisotear ou ridicularizar todo e qualquer símbolo religioso é contrário ao projeto do Deus da Vida. Ao longo da história de Israel, da vida e prática de Jesus e das primeiras comunidades, há uma defesa da vida ameaçada. Foram grupos e pessoas que tentaram reerguer o ser humano encurvado (Is 57,15). A nossa leitura da Bíblia precisa ser feita a partir da vida e da prática de Jesus. O Deus revelado em Jesus Cristo é o Deus do Êxodo, que caminha com o povo e quer que todas as pessoas tenham vida digna: “Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância” (Jo 10,10).

Continuando a pensar…

Deus é um mistério tão grande e complexo para ser absorvido, em sua totalidade, por uma pessoa, grupos religiosos ou étnicos. A experiência de Deus de um povo não fecha a porta que outros povos tenham outras experiências. A absolutização da experiência de um povo tem como consequência a dominação e submissão de outras experiências religiosas. Neste processo, o próprio Deus que é mistério, grande e complexo para a nossa compreensão e experiência, é aprisionado no cativeiro de uma única experiência.

Não vamos apequenar Deus pela absolutização da nossos esquemas. Diálogo entre uma experiência de Deus e outras (o diálogo inter-religioso) é, portanto, o caminho para aproximar humildemente de Deus, que se revela a todos, de diferentes formas, para que todos possam ter vida em abundância. Vamos libertar o Deus Libertador do cativeiro do absolutismo de uma experiência.

Maria Antônia Marques – assessora do Centro Bíblico Verbo e professora no ITESP.

As informações sobre o Êxodo foram extraídas do livro “A Lei a favor da vida? Entendendo o livro do Deuteronômio”, p.116-125. São Paulo: Paulus, 2020.

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