ESPERANÇA E PROFECIA EM TEMPOS DE PANDEMIA

Esperança é como uma planta que você tira do vaso, coloca na terra, faz uma proteção, coloca adubo, e rega todos os dias. Proteger, adubar e regar todos os dias a esperança que existe em cada um, em cada uma de nós é o princípio básico para se manter de pé nestes tempos de pandemia, onde as sombras insistem em ocupar os espaços da luz; onde o ódio insiste em querer reprimir a alegria; onde o fanatismo insiste em suprimir a razão.

Por: Emerson Sbardelotti

NÃO HAVERÁ UMA NOVA ARCA DE NOÉ

O COVID-19 forçou o ser humano a encarar o maior desafio de sua existência: conhecer e reconhecer a si mesmo, sem maquiagem, sem máscara; a entrar em contato com a compaixão, com o perdão mútuo; e reencontrar a sua identidade enquanto seguidor/a de Jesus de Nazaré, enquanto guardião/ã da Casa Comum, sua verdadeira vocação a tanto tempo esquecida. O momento pede vigilância e obediência aos pedidos desesperados dos órgãos de saúde, da própria Organização Mundial da Saúde. O COVID-19 mata, não é uma “gripezinha”!

Neste isolamento social, Jesus espera de nós, que fiquemos em nossas casas, cuidando uns dos outros, rezando junto, se ajudando, preparando nossos corações e mentes para o grande abraço de vida: sairemos transformados e transformadas desta pandemia, novas relações de respeito, diálogo e encontro estão sendo tecidas no ambiente familiar. Durante esta quarentena, somos convidados/as a transformar nossas atitudes. É urgente e necessário que as pessoas não saiam de suas casas, a não ser que seja extremamente necessário. Que tomem todos os cuidados para que não sejam contaminados/as pelo COVID-19.

A conscientização em torno da defesa da vida deve ser refletida ao redor das mesas. Estamos tendo a grata oportunidade de em família, refletirmos sobre nossa culpa nesta pandemia. Os seres humanos são os únicos culpados por tudo o que está acontecendo, pois estamos destruindo a Natureza. O Papa Francisco[1] alerta-nos: o cuidado dos ecossistemas requer uma perspectiva que se estenda para além do imediato, porque, quando se busca apenas um ganho econômico rápido e fácil, já ninguém se importa realmente com a sua preservação. Mas o custo dos danos provocados pela negligência egoísta é muitíssimo maior do que o benefício econômico que se possa obter. […] Por isso, podemos ser testemunhas silenciosas de gravíssimas desigualdades, quando se pretende obter benefícios significativos, fazendo o restante da humanidade, presente e futura, pagar os altíssimos custos da degradação ambiental (FRANCISCO, 2015, p. 30-31).

Não haverá uma nova arca de Noé, onde uns se salvarão e outros não. Neste instante, ou nos salvamos todos, todas, ou não restará ninguém! Precisamos colocar em prática a experiência do cuidado, a experiência do bem viver e do bem comum. Entender que, a teimosa esperança insiste em nos mostrar que o Espírito da Verdade acompanha os nossos passos, ele sopra onde quer, ninguém consegue mandar nele. É um hálito de Vida que renova o ar denso de nossas moradas. Precisamos deixar que este ar novo suavize nosso pensar, nosso agir e tire de nós toda a poeira que emperra nossas janelas e portas interiores de estarem abertas.

Este tempo de pandemia é propício para o cultivo da misericórdia e da solidariedade. Caminhamos na direção da Galileia. Precisamos ressuscitar a partir do amor. Sou um realista esperançoso. Esperançar é fazer a esperança acontecer!

ESPERANÇAR SEMPRE

Paulo Freire[2] dizia que ele não era esperançoso por pura teimosia, mas por imperativo existencial e histórico. Porém, não atribuía sua esperança ao poder de transformar a realidade. Todavia, mesmo convencido, partia para o embate sem levar em consideração os dados concretos materiais, afirmando que sua esperança bastava. Ela era necessária, mas não era suficiente. Ela só não ganharia a luta, mas sem ela a luta fraquejaria e titubearia. Pensar que a esperança sozinha transforma o mundo e atuar movido por tal ingenuidade é um modo excelente de tombar na desesperança, no pessimismo, no fatalismo. Mas, prescindir da esperança na luta para melhorar o mundo, como se a luta se pudesse reduzir a atos calculados apenas, à pura cientificidade, é frívola ilusão.

Prescindir da esperança que se funda também na verdade como na qualidade ética da luta é negar a ela um dos seus suportes fundamentais. O essencial é que ela, enquanto necessidade ontológica, precisa de ancorar-se na prática. Enquanto necessidade ontológica a esperança precisa da prática para tornar-se concretude histórica. É por isso que não há esperança na pura espera, nem tampouco se alcança o que se espera na espera pura, que vira assim, espera vã. Sem um mínimo de esperança não podemos sequer começar o embate, mas, sem o embate, a esperança como necessidade ontológica, se desarvora, se torna desesperança que, às vezes se alonga em trágico desespero.

Daí a precisão de uma certa precisão de uma certa importância em nossa existência, individual e social, que não devemos experimentá-la de forma errada, deixando que ela resvale para a desesperança e o desespero. Desesperança e desespero, consequência e razão de ser da inação ou do imobilismo (FREIRE, 1997, p. 5-6).

Esperança é como uma planta que você tira do vaso, coloca na terra, faz uma proteção, coloca adubo, e rega todos os dias. Proteger, adubar e regar todos os dias a esperança que existe em cada um, em cada uma de nós é o princípio básico para se manter de pé nestes tempos de pandemia, onde as sombras insistem em ocupar os espaços da luz; onde o ódio insiste em querer reprimir a alegria; onde o fanatismo insiste em suprimir a razão.

As profetisas e os profetas do mundo bíblico tinham como atitudes fundamentais: 1. Anunciar as maravilhas que Deus realizava entre o povo; 2. Denunciar as injustiças e maldades cometidas contra o povo; 3. Ameaçar, a partir da Palavra de Deus, o poder reunido nas mãos das elites que faziam o que era mal aos olhos de Deus; 4. Manter viva a esperança no meio do povo, mesmo que essa ação lhes tirassem a própria vida. Fazer valer o Projeto de Vida de Deus era a missão das profetisas e dos profetas do Primeiro Testamento. Se tornou o Projeto de Vida de Jesus de Nazaré, se espalhou pelas primeiras comunidades cristãs e chegou até os nossos dias. Inúmeros são os exemplos de mulheres e homens que na América Latina e Caribe se tornaram mártires da caminhada, por levarem até as últimas consequências a defesa constante da vida.

Fizeram valer o pedido que D. Helder Camara fez ao monge Marcelo Barros, na última vez que se encontraram: “Não deixe cair a profecia!”. Não deixar cair a profecia é manter acesa a chama da esperança. E ela está acesa, por mais que tentem apagá-la, não conseguirão. É estar no movimento de transformar o agora. Atento aos sinais dos tempos, aos problemas sociais; discutindo-os; fazendo as pessoas reconhecerem a capacidade que cada uma delas possui na mudança que se faz necessária em favor da justiça. Neste processo de conscientização da esperança, não há espaço para se deixar vencer pelo cansaço.

VOZ E PALAVRA PROFÉTICA

Onde estão os escolhidos do Reino de Deus? Nas periferias e nas quebradas: esquecidos, excluídos e exterminados! Eis o lugar teológico! Eis a práxis que a Teologia da Libertação, em cinco décadas, vem mostrando e afirmando como endereço do encontro com Jesus de Nazaré.

O melhor lugar para o teólogo e para a teóloga estar? A comunidade eclesial de base! No meio do povo santo de Deus! As CEBS por natureza são discípulas e missionárias, portanto, seguidoras fiéis do espírito profético de Jesus de Nazaré.

E ao olhar para este horizonte, para a luta cotidiana e sofrida do povo, todos os dias, experimento o amor de Deus que através de sua Palavra, inunda e me joga para fora da Igreja e constato que por causa da profecia, as CEBS, as Pastorais Sociais, os Movimentos sociais produziram tantos/as mártires.

Os/As mártires da América Latina e Caribe não morreram para salvar almas, morreram para salvar vidas! E para ilustrar o meu entendimento sobre a figura do profeta e da profetisa nos dias atuais, convido você a ler, a rezar um poema que escrevi, que acredito e anuncio:

O PROFETA QUE CAMINHA[3]

O profeta é aquele que anuncia, denuncia e ameaça. / A sua voz é a voz dos pequeninos…que insiste na esperança… / A sua vez é a vez dos pequeninos…que insiste na justiça… /Por isso incomoda…e no silêncio, o barulho é ensurdecedor. / Por isso incomoda…e assim aduba o chão com seu sangue. / Com sangue de mártir não se pode brincar.

Fabio Damasceno[4] nos diz que, no tocante à questão profética ou da profecia hoje, há duas expressões necessárias para definir fenômenos distintos:

Uma é o que chamo de voz profética. A voz profética é uma voz que chega ao homem, que aparece na cultura e que procede da própria cultura. Ela denuncia as injustiças, as distorções, denuncia aquilo que não é do interesse comum, do bem comum, dos valores maiores da humanidade. A voz profética aponta, fere, acusa, chama a atenção e faz uma crítica profunda do que se passa.

A outra expressão é a da palavra profética. Esta tem diferenças em relação à voz profética, embora também cumpra funções semelhantes às dela. A primeira diferença é de origem. Creio que a cultura não é apenas um sistema fechado, ou seja, o resultado de tudo o que o homem pode criar e desenvolver no seu existir, mas que, acima da cultura está uma outra dimensão, o nível supra cultural, que está para além, que transcende a cultura. E este nível procede de Deus, se refere ao eterno, ao Reino de Deus, à dimensão espiritual propriamente dita. Portanto, a palavra profética é expressão da fala de Deus por meio de instrumentos humanos, é uma fala que procede do divino, que expressa os pensamentos, os desígnios e os avisos do Altíssimo (DAMASCENO, 2002).

A voz profética e a palavra profética que a cada Dia do Senhor, escutamos e rezamos no aconchego de nossas casas, é a voz e a profecia do Deus Pai-Mãe de misericórdia, bondade, justiça, amor, solidariedade e libertação. Elas batem fundo em nossos corações e em nossas almas, trazendo alento e força para atravessarmos o deserto em que nos encontramos. Os abraços e os beijos irão voltar e juntos poderemos cantar a alegria e o amor, uma profecia:

O PROFETA – (Pe. Zezinho, scj)

Eu não sei cantar, eu não sei rezar/ Eu não sei fazer canções bonitas/ Como tanta gente faz/ Sou como criança que só sabe balbuciar/ Mesmo assim teu amor me mandou profetizar

Minha profecia é feita de alegria/ Eu não sei cantar o amor perdido/ Como tanta gente faz/ Sou como criança que da noite faz o dia/ Depois que fez a manha está sorrindo de alegria

Canto quando eu choro, canto pra sorrir/ Minha profecia o mundo inteiro vai ouvir/ Canto pela paz, canto contra a guerra/ Canto pra varrer o egoísmo desta terra

Teu amor me disse vai falar de paz/ Eu não sei falar de armistício como tanta gente faz/ Creio na criança, no jovem e no velho/ Na minha vida eu vou escrever teu evangelho.

Emerson Sbardelotti – * Doutorando e Mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Agente de Pastoral Leigo da Paróquia Nossa Senhora da Conceição Aparecida, Cobilândia. Ministro da Palavra na CEB Nossa Senhora do Magnificat, em Jardim Marilândia, Vila Velha-ES. Membro do Grupo de Pesquisa LERTE (Literatura, Religião e Teologia). Bolsista CAPES. Correio eletrônico: sbardelottiemerson@gmail.com.


[1] FRANCISCO. Carta Encíclica Laudato Si’ sobre o cuidado da Casa Comum. São Paulo: Paulinas, 2015.

[2] FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1997.

[3] SBARDELOTTI, Emerson. Poesia Pé no Chão. São Leopoldo: PUB Editorial, 2017, p. 46.

[4] DAMASCENO, Fábio. O que é a profecia? Quem é o profeta? Há profecia hoje? In: BINGEMER, Maria Clara Lucchetti. YUNES, Eliana. (Orgs.). Profetas e Profecias – Numa visão interdisciplinar e contemporânea. São Paulo: Edições Loyola, 2002.

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