O arquiteto e urbanista na Economia de Francisco

Por: Claudia de Andrade Silva

O dia mundial da arquitetura é comemorado em 1º de julho no Brasil. Comemoração oportuna para refletir sobre a atuação profissional do arquiteto e urbanista, principalmente acerca de seu compromisso social. Uma pesquisa promovida pelo CAU/BR (2015) revelou que 85% da população brasileira que já reformou ou construiu não utilizou serviços de arquitetos e/ou engenheiros. De fato, ao percorrer a cidade com um olhar mais atento, a pergunta que salta aos olhos é:  afinal, a quem serve a arquitetura e urbanismo?

Se, por um lado, existe um pensamento comum na sociedade em relação ao arquiteto como um profissional de elite, por outro, é preciso questionar a maneira como se dá a formação desse profissional. Muitas vezes, o estudante de arquitetura e urbanismo é afastado do entendimento da realidade urbana. A urbanista Ermínia Maricato provoca com a expressão “o arquiteto deve ser útil”,[1] já que ele precisa ter habilidades para lidar com os desafios concretos presentes no ambiente construído. É preciso pontuar também que essa prática profissional não é exclusivamente técnica, mas também política, pois pode tanto reproduzir opressões, como aspirar transformação social.

A realidade urbana em contexto capitalista

Entender a realidade urbana é importante tanto na formação de profissionais comprometidos com o enfrentamento das desigualdades socioterritoriais, como também para suprimir a representação ideológica sobre a cidade.[2]É importante entender que, historicamente, o Estado não amparou ou garantiu condições mínimas para a concentração de trabalhadores da indústria nas cidades em formação. Isso colaborou para a precarização das condições de vida em moradias, construídas com as “próprias mãos” desses trabalhadores. Assim, a autoconstrução está relacionada com o modelo de desenvolvimento brasileiro, que associa um grau de crescimento econômico com extrema desigualdade e pobreza (CARDOSO, 2007).

O dado alarmante do CAU expressa a realidade urbana: as cidades brasileiras, em sua maioria, foram autoconstruídas. A partir dos recursos próprios dos moradores, a autoconstrução surge como alternativa de adesão à vida urbana para grande parte da população que é excluída da demanda programática do Estado, como também do mercado imobiliário formal. Essa produção ocorre em territórios que não interessam a esse mercado, pois, no modo de produção capitalista, a cidade é tida como mercadoria que se transforma em capital, onde há a disputa de forças pelas localizações. À medida que um bem comum – como a terra – é mercantilizado neste contexto, ele passa a ser dominado por um mercado restrito, elitista e especulativo (MARICATO, 2011). Não é por acaso que as moradias precárias são autoconstruídas nas franjas da margem urbana e em áreas ambientalmente frágeis, como morros, encostas, beiras de córregos e áreas de mananciais. 

Dessa maneira, buscou-se demonstrar que o sistema econômico vigente produz e reforça as desigualdades socioterritoriais. Sendo assim, para a superação da produção e apropriação desigual da cidade é preciso (e urgente) uma mudança no paradigma econômico.  Para alcançar a democratização da cidade é necessária, antes, a democratização econômica. 

A Economia de Francisco

Da necessidade urgente de mudança de paradigma econômico é possível olhar a Economia de Francisco como um despertar de uma nova esperança, pois tem como objetivo a construção de uma “economia diferente, que faz viver e não mata, inclui e não exclui, humaniza e não desumaniza”(FRANCISCO, 2019).

A Economia de Francisco originou-se a partir de uma carta convite escrita pelo Papa Francisco, dirigida a jovens pesquisadores e ativistas, para um encontro mundial que acontecerá em Assis (Itália). Para o Papa Francisco, é preciso mudar a economia atual e atribuir uma alma à economia de amanhã, é preciso re-almar a economia. 

Esse chamado é resultado de um processo iniciado pelo Papa Francisco de escuta séria e respeitosa da voz daqueles que, nas periferias da existência, por tantas vezes foram silenciados, criminalizados e perseguidos. Em especial, é possível destacar seus três encontros com os Movimentos Populares, nos quais o Papa já anunciava suas intenções para o que posteriormente viria a ser a Economia de Francisco.

No encontro de 2014 (Roma), convoca para uma solidariedade que resulte em ações transformadoras, mais do que em gestos de generosidade esporádicos, pois é preciso “lutar contra as causas estruturais da pobreza, a desigualdade, a falta de trabalho, a terra e a casa, a negação dos direitos sociais e laborais” (FRANCISCO, 2014). No discurso de 2015 (Santa Cruz de la Sierra), vincula de forma direta a economia com as causas estruturais da pobreza, já que a desigualdade é “resultado de uma prévia opção social, de um sistema econômico que põe os benefícios acima do homem” (FRANCISCO, 2015). Já no encontro de 2016 (Roma), expressa a revolta presente na doutrina da Igreja em relação à forma abusiva do sistema econômico perante a sociedade, já que “o ídolo dinheiro, que reina em vez de servir, tiraniza e aterroriza a humanidade” (FRANCISCO, 2016). Francisco, em seus pronunciamentos, reforça a necessidade de uma mudança estrutural, pois não tem perspectiva de melhoramento do sistema econômico vigente.

Na Encíclica Laudato Si’ (2015), Papa Francisco demonstra, a partir do conceito ecologia integral, como tudo está intimamente interligado, e, portanto, que a salvaguarda ambiental não pode estar separada da justiça para com os pobres e a da solução dos problemas estruturais da economia (FRANCISCO, 2019). A partir dessa visão integral, o Papa expressa que não há duas crises separadas, uma ambiental e outra social, mas uma única e complexa crise socioambiental (LS,139). Portanto, é possível refletir sobre o espaço urbano à luz do que propõe o Papa Francisco, já que, em uma sociedade desigual como a brasileira, foi nos territórios ambientalmente frágeis que os excluídos – do mercado capitalista e do Estado – se instalaram. Assim, identifica-se a raiz econômica da crise socioambiental presente nas periferias urbanas, que estão inseridas em cidades profundamente desiguais e excludentes.

Arquitetura e Urbanismo na Economia de Francisco

Na cidade, é possível ver de maneira evidente as profundas desigualdades causadas pelo modo de produção capitalista, seja pela segregação territorial, como também pelas condições de moradia e/ou privação de bens e serviços públicos. Nesse sentido, é de extrema importância o chamado do Papa Francisco para que se pense uma nova economia de maneira interdisciplinar, mas sobretudo a partir das diferentes experiências territorializadas.

Ser contra a exclusão, a segregação, o abandono e a violência nas periferias urbanas é uma questão econômica. Portanto, é preciso inserir a democratização da arquitetura e urbanismo no debate sobre economia, entendendo que não basta distribuir renda para alcançar a justiça urbana, e que é preciso distribuir cidade. Distribuir cidade passa por políticas fundiárias e imobiliárias que garantam a função social da propriedade, pois a questão da terra é um “nó” na política urbana (MARICATO, 2011). Distribuir cidade passa também por acesso à moradia digna, aos bens e serviços urbanos.

A construção dessa nova economia deve ser feita a partir da comunhão de diferentes olhares e saberes das mais diversas práxis, e de maneira a reforçar a importância do protagonismo das comunidades locais, pois a tão sonhada mudança de sociedade requer atenção à prática popular, o que se observa na luta concreta e cotidiana dos pobres pelo direito à cidade. E nesse sentido o arquiteto e urbanista tem um papel fundamental a partir de uma atuação mais próxima a realidade das maiorias.

Portanto, o dia mundial da arquitetura é uma oportunidade para a defesa dessa profissão na busca por uma arquitetura mais útil a maioria da população. Reconhecendo os limites, contradições e potencialidades dessa profissão, o arquiteto útil tem uma atuação política na luta por cidades mais justas e democráticas, ao enfrentar desafios concretos da realidade brasileira.

Referências

CARDOSO, A. L. Avanços e desafios na experiência brasileira da urbanização de favelas. In: Cadernos Metrópole. São Paulo, v. 17, p. 219-240, 2007.

FRANCISCO, P. Discursos do Papa Francisco aos participantes nos Encontros Mundiais dos movimentos populares. Disponível em: <http://www.vatican.va/content/vatican/it.html>. Acesso em: 10 de jun. de 2020. 

MARICATO, E. Nossas cidades estão ficando inviáveis. Ipea, 2011. Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&view=article&id=2508:catid=28&Itemid=23>. Acesso em: 20 de jun. de 2020.

SANTO AMORE, C. Assessoria e Assistência Técnica: arquitetura e comunidade na política pública de habitação de interesse social. In: II Seminário Nacional sobre Urbanização de Favelas, 2016, Rio de Janeiro. Anais do II URBFAVELAS. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2016.


[1] Ermínia Maricato utilizou a expressão “o arquiteto deve ser útil” em uma sessão sobre assessoria técnica durante o Encontro da ANPUR (Associação Nacional de Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional) em 2009. Segundo Caio Santo Amore: o arquiteto deve ser útil”, ter habilidade para dar respostas a problemas complexos – da produção do espaço urbano, do desenho das políticas públicas, da composição ou da gestão de equipes de grandes projetos e obras que têm influência sobre milhares de pessoas- mas também deve lidar com problemas (aparentemente) simples, terrestres – um arranjo adequado dos ambientes, um banheiro bem organizado, uma infiltração, uma trinca, uma abertura de janela que melhore condições de segurança ou salubridade de uma família.”  (SANTO AMORE, 2016, p.6)

[2] Segundo Maricato (2013), a representação da cidade, muitas vezes, é feita através da ficção. De modo geral, a mídia e a publicidade dissimulam a realidade urbana, encobrindo assim a realidade científica. Dessa maneira, o conhecimento é fundamental para desconstruir essa representação ideológica (utilizada como instrumento de poder) e para fornecer base científica para a ação.

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