Ofício Divino das Comunidades: um elemento inculturado da oração da Igreja pós-conciliar

Com o advento do coroamento da realidade eclesial sob o influxo da Lumen gentium [LG][1], que assegura que a Igreja é ‘povo de Deus’, foi necessário no período pós-concílio alargar a compreensão de liturgia, de celebração, de espiritualidade e de fé, a fim de que se perguntasse como é que agora, o povo, de fato, pudesse se inserir na dinâmica celebrativa, objeto e ambiente até então exclusivos do clero. A necessidade de ‘devolver’ a liturgia ao povo era o marco da reforma litúrgica.

Por: Eurivaldo Silva Ferreira

De certa forma, a Sacrosanctum concilium [SC][2] e o incremento da reforma desejavam que o povo não se distanciasse da fonte de espiritualidade, que é a liturgia, assim como aconteceu no período do segundo milênio da história da Igreja. Na ocasião, os recursos que a própria liturgia usou para isso foram os de qualificar o povo nesta participação, sobretudo, escolhendo e elegendo novas funções que exercessem verdadeiros ministérios nas celebrações, passando de uma situação em que o padre fazia tudo para uma realidade em que a liturgia fosse toda ministerial, isto é, o povo todo participe plena e ativamente da celebração comunitária (SC 21) e eleja seus ministros para dar maior caráter às diversas funções existentes nas celebrações litúrgicas (SC 27-33).

Esse caráter de ministerialidade do povo de Deus passou a contar com ministros leigos que exercem diferentes funções, sobretudo na Eucaristia, ocasião em que se retomava a consciência de que toda assembleia exerce um ministério, o de ser povo reunido para se santificar e ao mesmo tempo louvar a Deus.

A partir da LG, a  imagem da Igreja ‘povo de Deus’ passou a ter visibilidade sob o símbolo da assembleia reunida. É a partir desta nova imagem da Igreja que alguns de seus membros são eleitos para exercer alguns ministérios, como leitores, cantores, salmistas, animadores, acolhedores, acólitos, entre outros. Embora destacando-se da assembleia, esses ministros são também parte dela, a ela servindo. Já que a liturgia é uma festa, esses ministros estão a serviço do povo de Deus em festa.

Tal ministerialidade demonstra que uma comunidade vai crescendo na sua vivacidade e na sua dinâmica, o que também contribui para uma maior diversidade de celebrações. Com isso, não só a missa foi atingida, mas todas as celebrações litúrgicas tiveram de se adaptar à nova realidade oriunda da reforma (SC 37-38), especialmente o Ofício Divino, conforme nº 83 da SC. É o início daquilo que mais tarde foi sendo chamado de inculturação da liturgia[3].

Em capítulo especial da SC, a Liturgia das Horas é a realidade litúrgica com a qual deveria passar pelo ímpeto da reforma litúrgica, saindo de seu estado privado para o público. Deixando de ser uma oração exclusiva dos padres, era necessário que leigos e leigas se juntassem ao clero nessa oração da Igreja. Por isso pedia a SC adaptações às realidades da vida atual, a fim de que, em nome da participação ativa, frutuosa, plena e consciente, se restaurasse esse jeito de rezar como fonte de espiritualidade e de fé, assim como o era nas comunidades primitivas. Deste modo, “desde o início da Igreja a Liturgia gera a fé da comunidade, e, reciprocamente, a vida da comunidade deve traduzir-se em Liturgia – ofício divino”,afirmou um de nossos bispos, já falecido.

1. A necessidade da adaptação da Liturgia das Horas no Brasil

No Brasil, a partir e aproveitando a experiência do Padre Geraldo Leite Bastos, cuja experiência artística vamos citar logo abaixo, a Liturgia das Horas é adaptada aos moldes de uma espiritualidade popular. A questão em jogo é a participação ativa, plena, frutuosa, consciente do povo, que devia perceber na liturgia a fonte principal para alimentar sua espiritualidade. O cenário litúrgico e seus elementos eram o objeto da reforma litúrgica. Assim:

… para que o povo possa participar plenamente, é preciso que o mistério seja expresso não somente em sua própria língua, mas também em sua própria linguagem simbólica, ritual, poética, musical, arquitetônica… Devemos considerar ainda, como caminho de inculturação, a relação da liturgia com a ‘piedade popular’, tão fortemente presente e arraigada na cultura religiosa brasileira (e latino-americana, de modo geral)[4].

Assumindo essas características e, atendendo aos princípios da reforma litúrgica, restaurado seu nome oficial, o Ofício Divino foi revestido de uma linguagem latino-americana, característica do povo mais simples e das comunidades que refletem uma piedade e espiritualidade bem características com uma linguagem mais oral do que escrita, mais popular e menos intelectual, embora não abandonando os traços da religiosidade popular, mas incorporando-os a uma teologia mais aproximada do povo.

A questão era então procurar nas bases um jeito próprio de se rezar e a elas se ajuntando aqueles que já o tinham como obrigação de fazê-lo: os padres, as religiosas, os religiosos etc. Para isso, colaboraram os depoimentos e testemunhos do Padre Geraldo Leite Bastos, que já tinha grande repertório bíblico-poético-musical, e que foi aproveitado para as primeiras publicações do que seria mais tarde o Ofício Divino das Comunidades [ODC].

A maior parte das músicas que estão no ODC, sobretudo as melodias dos salmos, assumem as raízes melódicas do povo. Houve um trabalho cuidadoso de juntar tradição e cultura local, o conteúdo da fé e sua expressão em linguagem musical brasileira, procurando criar um repertório significativo e duradouro. Trata-se de uma música que mistura, no dizer de Geraldo Leite, “melancolia e esperança, ritmos e saudades, alegria e dores, África e Brasil”[5].

A propósito desse grande compositor litúrgico brasileiro, foi publicada por Joaquim Fonseca uma obra fruto de sua dissertação de mestrado, em que afirma que as melodias do padre Geraldo Leite, “além da acentuada presença das constâncias modais, típicas da música nordestina, (…) fazem com que encontremos uma expressiva influência da cultura afrobrasileira, especialmente as músicas dos terreiros”[6].

Com bastante fé e um pouco de criatividade, o ODC foi chegando à mão de todo povo cristão, graças a muitos incentivadores, liturgistas, músicos e poetas, que permitiram que o povo pudesse ter acesso a uma espiritualidade genuína que falasse sua língua, com seus jeitos e costumes tanto de rezar como de cantar.

Na afirmação do monge Marcelo Barros, o ODC foi enriquecido de “um elemento fundamental do estilo brasileiro: o caráter afetuoso da celebração”[7]. Todo cuidado também foi preciso a fim de que os textos bíblicos adaptados pudessem estar mais fieis possíveis à sua fonte de origem: a Bíblia.

Essa frente de personagens que contribuíram para a adaptação inculturada da Liturgia das Horas ajudou a construir muitos textos, salmos e hinos bem próprios da linguagem dos mais simples, com poesia e melodias oriundas das memórias e da cultura popular, principalmente atendendo à SC, sugerindo que na adaptação dos textos se preservasse a tradição, correspondesse à nobre simplicidade e brevidade, e tivesse de tal forma à altura da compreensão dos fiéis que não precisasse de muitas explicações (cf. SC, 34). Tratava-se então de fazer valer para as pessoas menos cultas a compreensão de que a mente e o coração concordem com aquilo que a voz cante ou recite.

Também contribuíram nesse processo as Comunidades Eclesiais de Base, que já praticavam em seus encontros a reflexão bíblica a partir da leitura popular das Sagradas Escrituras. Marcaram aí forte contribuição os biblistas Carlos Mesters e Francisco Teixeira, com sua experiência de trabalhar com as comunidades com uma linguagem dos salmos para hoje.

A propósito da dimensão pedagógica que possuem os salmos, e, uma vez que eles estão à altura e ao entendimento das pessoas mais simples, Marcelo Guimarães afirma que essa dimensão dos salmos no ODC está justamente no fato de a oração fazer com que o indivíduo cresça na fé para atingir a oração perfeita. Através dos salmos, contínua, treinamos para vencer as tentações e as dificuldades[8].

Os poetas e músicos Reginaldo Veloso e Jocy Rodrigues adaptaram muitos salmos, cânticos e hinos para a poesia brasileira, sobretudo aproveitando-se dos estilos religiosos e populares oriundos da cultura musical, da folcmúsica religiosa brasileira e do encontro das diversas culturas no país numa linguagem bem popular, levando em conta o jeito do povo narrar em versos as suas histórias de vitórias e de fragilidades, o que é bem próprio da cultura musical de uma determinada região do Brasil, e que toma conta da música popular brasileira.

A música no ODC cumpre função merecidamente assumida e desejada pela SC já que “houve um trabalho cuidadoso de juntar tradição e cultura local, o conteúdo da fé e sua expressão em linguagem musical brasileira, procurando criar um repertório significativo e duradouro”[9]. Ao longo do tempo, esses e outros compositores contribuíram com novas poesias e melodias para o enriquecimento do ODC.

Por sua aceitação popular, hoje, o ODC é um instrumento de celebração bem aceito nas comunidades de base, nas experiências das juventudes, nos grupos de oração, nos círculos bíblicos, nas comunidades religiosas, na catequese e até na rádio arquidiocesana de São Paulo, Rádio 9 de Julho, oração diária no ar durante o período de 2009-2019.

O ODC foi também assumido como elemento principal de oração da Rede Celebra de Animação Litúrgica, organismo que atua na formação litúrgica no Brasil, com diversos núcleos espalhados pelo Brasil, e do Centro de Liturgia Dom Clesmente Isnard, quando promove sua Semana de Liturgia. Essas duas instâncias colaboraram para a popularização do ODC no Brasil. Recentemente o ODC foi assumido no Documento 108 da CNBB, Ministério e Celebração da Palavra, como uma das possibilidades de estrutura da Celebração da Palavra.

2. Música, poesia, ritmos e cultura local: elementos inerentes à adaptação da tradição

Padre Geraldo Leite Bastos, músico, poeta e artista, em sua comunidade localizada em Recife, Pernambuco (Nordeste do Brasil), foi quem primeiramente adaptou a Liturgia das Horas para sua gente simples, da roça e da periferia, fazendo com que o povo cantasse de cor uma variedade de salmos bíblicos já transformados por ele em textos poéticos ao estilo dos cantadores e repentistas característicos desta região[10]. Foi também ele quem fez pequenos roteiros adaptados da Liturgia das Horas, visando mais diálogos com o povo que a rezava. Batizou este estilo de rezar de “Ofício”, como assim já era conhecida no Brasil a tradição bem popular do “Ofício de Nossa Senhora”.

Ele mesmo, ao experimentar as celebrações de Taizé, na França, quis introduzir esses pequenos refrãos orantes em sua oração do “Ofício”. Também foi ele quem primeiro introduziu em sua comunidade o instrumento de percussão atabaque, a partir de suas experiências com os irmãos e irmãs dos cultos afrodescendentes, com quem tinha estreita amizade, e ainda por participar de seus cultos, a fim de registrar as constâncias melódicas e os ritmos ali cantados e dançados. Conseguiu atrair um público jovem para sua comunidade, ao ponto de valorizar sempre a música com os ritmos da cultura local, o que era um fator chamativo.

Deveras, a poesia e a música são um sinal sensível da Liturgia das Horas, elementos marcantes que modelam, de certa forma, a oração, e provocam a sensibilidade das pessoas, plenificando a participação ativa, plena, frutuosa e consciente. E também, de acordo com a expressão de fé vivida na realidade de América Latina, o Ofício Divino levou em consideração a natureza própria desses povos, assumindo ações rituais e gestos próprios com que o povo se expressa nos momentos de contato com os ritos e com o sagrado.

Levando em conta a experiência da conferência de Medellín, em que afirma que a páscoa de Cristo acontece na vida do povo sofrido, o Ofício Divino introduziu nos ritos iniciais o elemento da “Recordação da Vida”, ocasião em que aqueles que rezam podem trazer para a oração os fatos, as lembranças e os acontecimentos, como memória, dizendo-os em voz alta, para que sejam iluminados e transformados pelo mistério da páscoa de Jesus, elemento central na oração do Ofício, e pelo qual se faz memória, sobretudo pela manhã e à tarde. Tais elementos já são considerados para a comunidade que ora, já desde o início do Ofício, sinais da páscoa de Cristo acontecendo na vida e na história.

3. As várias publicações dos textos e músicas do Ofício Divino das Comunidades

  • Uma revista com temas sobre liturgia de circulação no Brasil (Revista de Liturgia) foi quem primeiro passou a publicar os roteiros da comunidade eclesial do Padre Geraldo Leite Bastos, com a contribuição de Reginaldo Veloso, Jocy Rodrigues e a editora responsável pela revista.
  • É publicado pela Editora Paulinas o livro “Cantar a Deus em terra estranha…”, que trouxe muitas versões cifradas dos salmos em forma de poesia, alguns deles já gravados em disco. Participaram desta publicação os compositores Reginaldo Veloso, Geraldo Leite Bastos, Geraldo Leite de Souza, Jocy Rodrigues, dentre outros.
  • Entre 1988 e 1989 saiu a primeira edição do livro que mais tarde chamar-se-ia Ofício Divino da Comunidades. Em 1994 sua publicação oficial foi assumida pela Editora Paulus. Hoje encontra-se em sua 19ª edição.
  • Entre 1988 e 1989 tem-se notícias do surgimento de uma publicação chamada “Oração jovem”, um pequeno livrinho com elementos fundamentais do Ofício, feito para ser mais barato e de fácil uso.
  • Para as celebrações com roteiros do Ofício da Mãe do Senhor, é publicado um livro em 2001, pela Editora Paulus. Nesta edição também foram recolhidos e adaptados hinos e cânticos a Maria oriundos dos antigos Ofícios de Nossa Senhora, muito rezados no Brasil e que ficaram na memória devocional do povo.
  • Um livro de partituras contendo Salmos e Cânticos bíblicos do ODC é publicado em 2001 pela Editora Paulus.
  • Em 2002 é publicado o Ofício da Novena do Natal pela Editora Paulinas. Hoje encontra-se em sua 6ª edição.
  • Em 2004 temos o Ofício Divino dos Mártires da Caminhada, publicação para ajudar as comunidades a rezarem ou festejarem os santos e santas locais que foram martirizados em nome da fé.
  • No mesmo ano é publicado o Ofício Divino da Juventude pela CAJU (Casa da Juventude Padre Burnier/GO), enriquecido com músicas populares e com um jeito próprio da Pastoral da Juventude do Brasil (2004: 10 mil exemplares; 2006: 25 mil exemplares; 2008: 10 mil exemplares; 2009: 15 mil exemplares; 2012: 10 mil exemplares; 2013: 10 mil exemplares).
  • As crianças e adolescentes também puderam contar com uma publicação própria, datada de 2005, pela Editora Paulus.
  • Em 2005 publica-se o 2º volume do livro de partituras com as melodias para Abertura, Hinos, Refrãos meditativos, Aclamações, Responsos, Respostas às Preces, Pai Nosso e Bênção.
  • Os áudios do Ofício Divino de Completas (Oração da noite) foram gravados pela Editora Paulinas-COMEP em 2005, acompanhados de pequenos roteiros para uma semana chamados de Oração da noite.
  • Os áudios do Ofício da Mãe do Senhor foram divididos em 3 etapas, e gravados respectivamente em 2001: Ofício das Alegrias; 2004: Ofício das Dores; 2008: Ofício das Glórias.
  • Um grupo que trabalhava com juventudes na Casa da Juventude Padre Burnier/GO gravou em 2006 o Ofício Divino da Juventude, acompanhado de um roteiro de formação e capacitação sobre o ODC para grupos de jovens.
  • Em 2013 foram gravados Salmos, Hinos e Cânticos do Ofício da Novena de Natal, publicados por Paulinas-COMEP
  • Além de muitas gravações incluídas no Hinário Litúrgico Nacional.

4. Desafios e perspectivas ligados ao “modelo” de Igreja no Brasil

Marcelo de Barros em seu artigo “Descolonizar a oração da Igreja” afirma que o ODC, desde sua primeira edição em 1988, tem ajudado muitos grupos de base e comunidades eclesiais, além de ser referência para a Pastoral da Juventude de Meio Popular e tem sido de grande proveito para comunidades religiosas que buscam inculturar a vida e a oração. Muito embora sua crítica se restrinja a “libertar” o ODC de certo colonialismo da oração comunitária intuída por Roma, ele aspira profundo sentimento de realização ao entender que o ODC assumiu e integrou outras tradições litúrgicas e principalmente a sensibilidade de nosso povo. A isso entende como que um caminho para “descolonizar” a oração.

Por detrás do processo de inculturação requerido pela SC está o desejo de que os “pensadores” do ODC visavam devolver ao povo o que lhe pertencia, justamente pelo fato de o povo ficar por séculos afastado das práticas da oração e sem poder ter direito a uma participação plena nas ações rituais da Igreja.

O ODC se apresenta como proposta da Igreja do Brasil como um meio eficaz de contemplar o Espírito de Deus presente a atuante no universo inteiro e em todas as culturas da humanidade enquanto ele mesmo ora em nós pela boca do Cristo, com salmos, hinos e cânticos espirituais (cf. Ef 5,19). Desta forma, no ODC, na oração que exerce sua forma pedagógica e ao mesmo tempo sacramental, todos são lembrados, expressão máxima de que o trabalho do Reino se vive na caridade e no testemunho e se expressa na celebração.

Contudo, permanecem alguns desafios para a realidade eclesial do Brasil, que, frente a muitas ofertas de modelos de oração, principalmente nos meios de comunicação, carece ainda de uma liturgia que fale aos mais simples não com tonalidades de acentuação de cura e magia ou oferta de certos fenômenos extraordinários religiosos como sendo cenário atrativo para multidões de fiéis satisfazerem seus sentimentos pessoais, ensejados pelo aspecto pseudodevocional ali apresentado. Decerto, a oração comunitária não se propõe a este fim. Por sua vez, não se coloca como “mais uma oferta” no tão exuberante mercado religioso nacional.

Sobretudo ainda permanece o desafio da união entre cultura popular e liturgia, que, apropriando-se do jeito do povo se expressar, assim como nos salmos, mostra que as atitudes corporais são expressão de um povo com suas raízes fincadas nas culturas afroameríndias, porém, bebendo das manifestações de seus colonizadores europeus, como é o caso da mistura das danças típicas de nosso país.

Avançamos no meio eficaz de uma oração, mas ainda nos persegue a libertação de nossas estruturas corporais devido à educação e à catequese ligada ao corpo como sinal de eminente risco para a desconcentração da oração. A propósito, vemos grupos e movimentos manifestando-se com pulos, palmas e mãos levantadas, sempre, mas que não demonstram o ardor gratuito do corpo que ora e louva com gestos e danças rituais, tal e qual acontece com pessoas e grupos oriundos de raízes e culturas africanas[11].

A liberdade poético-musical permitiu que a Igreja do Brasil bebesse muito mais da contribuição dos seus idealizadores do que da importação de textos traduzidos de outros países, principalmente em se tratando dos salmos, que foram expressos com o linguajar próprio da cultura das pessoas mais simples e com acentuada relevância a termos regionais tão bem conhecidos de nosso povo. Também corroborou o variado repertório de possibilidades melódicas oriundas das várias regiões do país, mas principalmente do Nordeste, lugar em que a influência dos modos gregos na musicalidade popular esteve tão presente. No entanto, há os que criticam tal opção, preferindo amoldar sua musicalidade aos padrões importados da música gospel ou neopentecostal norte-americana. Os movimentos de tendência carismática no Brasil assumem esse embate sem qualquer pudor.

O ODC é o meio eficaz da desenvoltura dos ministérios, principalmente aqueles que presidem as comunidades e que coordenam as orações no cotidiano das comunidades. O sutil conjugar entre ação, gesto, canto, palavra e sinal sacramental fazem dos ministros verdadeiros atuantes na forma da condução da liturgia, permitindo-os penetrar na espiritualidade e experimentar a força atuante do Cristo neles. No entanto, ainda carece de certa atenção do episcopado brasileiro, ao assumir o ODC como elemento inculturado, principalmente fazendo valer na prática o que já se assumiu por escrito no Documento 108 da CNBB, colocando-o como possibilidade de oração articulada com a celebração da Palavra de Deus, presente em 75% das comunidades do Brasil.

Concluindo: a mística do Ofício Divino das Comunidades

O compromisso comum da hora marcada, das músicas, dos salmos, ao qual cada pessoa se entrega voluntariamente, é algo salutar e contribui para ordenar a vida em uma lógica diferente, desenvolvendo uma nova maneira de se relacionar com o tempo.

A liturgia nos forma não pelo lado racional, mas pela via simbólico-ritual, é a maneira de celebrarmos com ritos e preces. O melhor que nós fazemos na liturgia é ter a certeza de ela nos formar para a vida. Ao interromper o ritmo da produção, toma-se consciência que o tempo não é apenas krónos, isto é, o tempo medido pelo relógio e preenchido com o trabalho sob a pressão do mercado; ao contrário, o tempo pode ser vivido como kairós, a saber, o tempo em que Deus opera dentro de nós e no coração da história, a sua obra, independente do nosso esforço.

Neste ritmo diário somos lembrados pelas horas, que o tempo não é o tirano ao qual devemos servir como escravo; existe outra maneira de nos relacionarmos com o tempo, a partir do movimento cósmico, com sua alternância de dia e de noite, de luz e de trevas, mais de acordo com as batidas do coração do que com o ritmo frenético das máquinas. É salutar que as pessoas de fé simples se alimentem disso. A oração do ODC se propõe como uma possibilidade aberta de um alimento espiritual que coaduna com as necessidades tanto das populações do campo como dos espaços mais urbanos nas pequenas e grandes cidades do Brasil.

Quando rezamos com o ODC, as imagens de luz e trevas voltam nossa atenção ao Mistério da hora, em relação às “Horas de Jesus”, e nos fazem descobrir dentro das contradições do nosso próprio tempo a ação amorosa do Pai, que faz brilhar em nosso mundo a luz de Jesus Cristo, nosso Salvador.

Nos últimos dias, em tempo de pandemia, a oração em casa tem sido verdadeiro refúgio e sinal de consolo para os que sofrem afligidos pelo mal da COVID-19. São pessoas que buscam na oração uma busca pelo sentido da realidade que nos circunda[12]. Os textos (hinos, salmos, cânticos e orações) do ODC têm ajudado muitas pessoas a se estruturarem nesses tempos, fazendo de suas casas verdadeiros santuários de fé, ao redor da família, ou até mesmo sozinhas. Na falta da frequência à comunidade de fé, a oração do ODC tem procurado suprir com excelência essa lacuna. A Igreja precisa considerar esse dado, procurando oferecer ao povo bons roteiros baseados na experiência daquelas primeiras comunidades cristãs, sobretudo levando-se em consideração o louvor e a ação de graças presentes nas várias horas do dia, relacionando-as ao mistério pascal do Cristo que morre e ressuscita todos os dias na páscoa do povo. O cosmos agradece e assim se reconcilia com Deus.

Referências bibliográficas:

Lumen gentium, Constituição dogmática sobre a Igreja, 1964.

Sacrosanctum concilium, Constituição conciliar sobre a Liturgia, 1963.

Barros, Marcelo. Descolonizar a oração da Igreja, in Revista de Liturgia124 (julho-agosto, 1994). São Paulo: Apostolado Litúrgico.

Buyst, Ione (org.). Formação litúrgica. Memória pessoal: Centro de Liturgia, 1985-2006. São Paulo: publicação particular.

Carpanedo, Penha. O louvor de Deus na boca do povo, in Revista de Liturgia178 (julho-agosto, 2003). São Paulo: Apostolado Litúrgico.

Fonseca, Joaquim. O canto novo da nação do Divino: música ritual inculturada na experiência do padre Geraldo Leite Bastos e sua comunidade. São Paulo: Paulinas, 2000.

Guimarães, Marcelo. O ofício Divino na espiritualidade dos Pais e Mães da Igreja, in Revista de Liturgia124 (julho-agosto, 1994). São Paulo: Apostolado Litúrgico.

Ofício da Novena do Natal. São Paulo: Paulinas, 20136

Oficio Divino das Comunidades. São Paulo: Paulus, 19941


[1] Constituição dogmática sobre a Igreja, 1964.

[2] Constituição conciliar sobre a Liturgia, 1963.

[3] Buyst, Ione (org.). Formação litúrgica. Memória pessoal: Centro de Liturgia, 1985-2006. São Paulo: publicação particular, pág. 12.

[4] Buyst, Ione (org.). Formação litúrgica. Memória pessoal: Centro de Liturgia, 1985-2006. São Paulo: publicação particular, pág. 12.

[5] Carpanedo, Penha. O louvor de Deus na boca do povo, in Revista de Liturgia178 (julho-agosto, 2003). São Paulo: Apostolado Litúrgico, p. 9.

[6] Fonseca, Joaquim. O canto novo da nação do Divino: música ritual inculturada na experiência do padre Geraldo Leite Bastos e sua comunidade. São Paulo: Paulinas, 2000, p. 165, apud Carpanedo, Penha. O louvor de Deus na boca do povo, in Revista de Liturgia178 (julho-agosto, 2003). São Paulo: Apostolado Litúrgico, p. 9. A expressão terreiros no Brasil é designada para identificar os locais onde há celebrações de cultos de origem afrodescendentes, fortemente marcados por musicalidade e danças com expressões ritmadas ao som de atabaques e outros instrumentos de percussão.

[7] Barros, Marcelo. Descolonizar a oração da Igreja, in Revista de Liturgia124 (julho-agosto, 1994). São Paulo: Apostolado Litúrgico, pág. 30.

[8] Guimarães, Marcelo. O ofício Divino na espiritualidade dos Pais e Mães da Igreja, in Revista de Liturgia124 (julho-agosto, 1994). São Paulo: Apostolado Litúrgico, pág. 33.

[9] Carpanedo, Penha. O louvor de Deus na boca do povo, in Revista de Liturgia178 (julho-agosto, 2003). São Paulo: Apostolado Litúrgico, p. 9.

[10] Os cantadores ou cantoria é o título dado a artistas populares que, em forma de repente, palavra originária do RAP (hrythm and poetry), apresentam-se em espaços públicos, como feiras, festas populares e ruas do Nordeste brasileiro. Na cantoria, o repente e o estilo de poesia usados são elementos já incorporados à cultura e ao folclore brasileiros.

[11] Na Introdução do livro do ODC (pp. 16-17) há um importante esclarecimento sobre “rezar com o corpo” a respeito dos diversos gestos que podem ser incorporados na oração (de pé, sentar-se, ajoelhar, inclinar-se, beijar o Evangeliário etc.). Assim entendemos que o corpo na oração está ligado à ritualidade e não a questões rítmicas da musicalidade, embora não se dispensem estas. Avançar nessa questão ainda é um desafio para nossa prática pastoral.

[12] Para ouvir alguns áudios da Oração da Tarde do ODC oferecidos diariamente pelo whatsapp, acesse o canal do Youtube: Euri Ferreira.

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