Para começar a ler a Fratelli tutti

Quando celebramos cinco anos da publicação da importante encíclica Laudato sí, o Papa Francisco nos brinda com um novo texto, Fratelli tutti, uma encíclica que ele também quer incluir na Doutrina Social da Igreja como sua contribuição particular.

Por: Antonio Manzatto

Trata-se de uma ousada reflexão que relança a utopia cristã como esperança que é a concretização da promessa e que, portanto, tem condições de se historicizar.

É bastante curioso perceber como, de maneira discreta, Francisco faz referência ao santo de Assis que inspira seu pontificado e sua ação de reforma eclesial. Duas encíclicas que começam com palavras de São Francisco de Assis, a Laudato sí e a Fratelli tutti, e ambas colocadas no cenário da DSI. Indicação clara de que suas referências franciscanas não se esgotam em uma espiritualidade individual, mas apontam para o compromisso cristão de transformação do mundo, aliás uma perspectiva bem presente na Gaudium et Spes. Nenhuma dúvida de que Francisco permanece em sua linha de atuação fiel ao Vaticano II, e fiel a sua missão de “reformar” a Igreja, colocando-a em saída.

Quero destacar dois aspectos introdutórios a uma reflexão mais aprofundada sobre o significado e, sobretudo, o alcance da Fratelli tutti. O primeiro tem relação com as “ferramentas” disponíveis para a concretização da utopia, sem o quê ela permanecerá apenas como ilusão. O segundo é o fato de sua proposta ultrapassar as fronteiras do catolicismo e mesmo do cristianismo para se transformar em proposta de humanidade, na sequência do encontro com o líder religioso muçulmano do Egito, o imã Ahmad Al-Tayyeb.

Ao discorrer sobre a fraternidade universal o papa não se contenta em apontar para um pio desejo, o de sermos todos irmãos, ou uma afirmação barata, aquela de que o somos todos, mas indica caminhos efetivos e concretos para a realização da fraternidade, que é um princípio cristão. Afinal, as palavras de São Francisco de Assis ecoam as do evangelho de Mateus (Mt 23,8): vós sois todos irmãos!

Porém, tal fraternidade não pode ser compreendida em sentido meramente espiritual ou sociológico, mas englobar todos os aspectos da vida humana. Por isso o papa insiste em começar sua reflexão apontando para a necessidade de se cuidar dos excluídos ao mesmo tempo em que se deve pensar em formas de organização do mundo que não produza mais seres humanos descartáveis.

E sua proposta atinge, então, concretizações históricas bem definidas: é necessário pensar outro sistema econômico, e não esse que privilegia apenas os grandes e fortes produzindo uma imensa gama de descartados; é necessário estabelecer outra maneira de os povos se relacionarem entre si, não mais em perspectiva colonialista; é necessário pensar em estruturas políticas que favoreçam o respeito à dignidade de todos os seres humanos apenas porque são seres humanos.

Ou seja, a fraternidade não é mera utopia sem possibilidades de concretizações mas, ao contrário, pode se tornar efetiva na história humana e para isso concorre, por exemplo, sua proposta de reunir jovens economistas para a proposição de modelos econômicos alternativos, iniciativa conhecida como “economia de Francisco”.

Além disso, lembra o papa que a fraternidade universal precisa ser efetivamente universal e não se satisfazer com parcialidades. Já na Evangelii Gaudium ele tinha afirmado que “o todo é superior às partes”, e assim não podemos nos contentar com uma fraternidade que se estabeleceria apenas no interior das nações nem tampouco no interior apenas do catolicismo. Se isso já é uma tarefa enorme, e nós bem sabemos quanto, a fraternidade precisa alcançar a toda a humanidade, no estabelecimento do que chamou de “amizade social”.

As pessoas não podem ser discriminadas por raça, crença, opções de vida ou classe social, sabemos bem disso e a própria legislação já compreendeu tal fato. A fraternidade, porém, vai mais além disso e engloba todos os povos do mundo. O planeta é nossa Casa Comum, ensinou a Laudato sí, e a Fratelli tutti diz que, nessa casa, somos todos iguais, somos todos filhos e filhas do mesmo Pai e então somos irmãos, para além das fronteiras de nossas igrejas, povos, nações ou religiões.

Ao inserir tal ensinamento na DSI o papa alerta para o fato de que se trata de forma de construir o mundo, não apenas a interioridade de indivíduos ou plataformas eleitoreiras de ocasião. Concretamente, isso se verifica a partir do cuidado com os descartáveis, assim como o fez o bom samaritano que “viu, sentiu compaixão e cuidou dele”.

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