Psicologia da Libertação: Compromisso com a conscientização e transformação

“Dos medos nascem as coragens. Os sonhos anunciam outra realidade possível, e os delírios, outra razão. Somos o que fazemos para transformar o que somos. A identidade não é uma peça de museu, quietinha na vitrine, mas sempre assombrosa síntese das contradições nossas de cada dia. Nessa fé, fugitiva, eu creio!” Eduardo Galeano

Por: Marília Mendes Lopes

Se torna cada vez mais complexa a discussão sobre o processo de identidades culturais diante os contextos da pós modernidade, onde as sociedades se encontram em constantes mudanças e possuem efêmeras ideias de pertencimento. Mas é cada vez mais urgente considerar e relembrar que a história territorial da América Latina foi marcada por intensa convulsão social, com crescente aumento das desigualdades e de alta violência estrutural que inegavelmente também geraram marcas nas subjetividades e na vida cotidiana das comunidades latino-americanas.

Considerando que a psicologia, como ciência e profissão, possui um compromisso ético de atuação para uma saúde integral de todas e todos os sujeitos, ainda que em sua diversidade de perspectivas e propostas de atuações, as profissionais psicólogas[1] são instigadas a contribuírem para uma constante recuperação da memória histórica e a propiciarem caminhos de transformação concretas das realidades individuais e coletivas.

Ressalta-se que, ao desconsiderarem o processo histórico e a identidade cultural, as profissionais psicólogas correm um sério risco de descompromisso com a realidade cotidiana daqueles com quem atuam, o que pode provocar uma visão centralizadora em meros objetos que precisam ser desvelados magicamente, desenraizados de suas historicidades e de suas potencialidades de mudança.

Um caminho que se apresenta para uma atuação cada vez mais compromissada com a historicidade dos povos é a Psicologia da Libertação, que possui como uma de suas raízes os ideais da Teologia da Libertação[2]. Temos como propositor desta abordagem, Ignácio Martín-Baró, jesuíta e psicólogo social, que propõe a busca do quehacer, ou seja, do papel profissional da psicologia. Sendo uma de suas principais preocupações a de que as práticas das profissionais dessa área não se deixem conduzir por definições genéricas de outros contextos, que gerem uma compreensão de nós mesmos e dos outros destorcidas da realidade que a maioria dos nossos povos enfrentam. (MARTÍN-BARÓ, 1997).

Martín-Baró, espanhol, de linha missionária da Companhia de Jesus, Ordem fundada pelo Espanhol Inácio de Loyola teve como vivência uma realidade marcada pela dominação de oligarquias, opressão e intervenções sociopolíticas o que gerou suas inquietações sobre o importante papel da psicologia. Ele apresenta como orientações para o trabalho de uma Psicologia Social voltada à Libertação o re-planejamento de sua bagagem teórica, ou seja, que sejam baseadas nos contextos latino-americanos e o fortalecimento das instâncias populares.

A Libertação, nessa perspectiva, é compreendida como válida a partir de análises da realidade que busquem alternativas a ela, assim, ela é vista com uma finalidade histórica:

A libertação é, por princípio, universalista, por que não concebe a possibilidade de uma liberdade individual em uma sociedade de opressão. A libertação não entende a fome, a violência, a miséria ou as situações das vítimas, como práticas discursivas, mas como realidades objetivas que devem ser destruídas. (LACERDA JR. E GUZZO, 2011 p. 18).

Destaca-se também as contribuições da brasileira, psicóloga social, Silvia Lane também na busca da construção de uma psicologia social crítica, que dialogasse com a realidade cultural, econômica e política do povo brasileiro. E junto às discussões latino-americanas, com a perspectiva materialista-histórica e dialética ressalta a importância da profissão atuando junto e comprometida com as camadas populares.

O objeto da Psicologia Social nasce, portanto, ao se criticar a psicologia social tradicional e pragmática e ao assumir a perspectiva materialista histórica e dialética, buscando encontrar pressupostos teóricos e epistemológicos que atendam a real realidade dos povos e do cotidiano de cada indivíduo, para que seja possível uma intervenção coerente dentro da complexidade que envolve cada ser humano e cada sociedade.

E a grande preocupação atual da psicologia social é conhecer como o homem se insere neste processo histórico, não apenas em como ele é determinado, mas principalmente, como ele se torna agente da história, ou seja, como ele pode transformar a sociedade em que vive. (LANE, 1981, p. 10).

Segundo Lane (1981; 2012) a psicologia social estuda a relação essencial entre o indivíduo e a sociedade. Visto que a história não é estática, pois os sistemas de valores de uma sociedade, a cultura é produto dinâmico de um povo, se faz necessário, portanto, estudar como os membros de um grupo social se organizam, para garantir sua sobrevivência, seus costumes, valores e instituições que se fazem importantes para a continuidade histórica e como eles se modificam.

Martín-Baró também discute sobre um fatalismo verificado nas populações excluídas da América Latina, que advém de uma ideologia fatalista que imobiliza de alguma maneira os sujeitos para mudanças significativas de suas realidades, já que são submetidos a um aprendizado sobre o seu lugar social de maneira cristalizada, e que seus esforços provavelmente não produzirão transformações concretas.

A práticaprofissional de psicólogas, portanto, segundo Martin-Baró (1997) deve ter como horizonte a conscientização que leve a uma compreensão individual de si e da realidade concreta e também de uma mudança de opinião sobre o mundo cotidiano, construindo um processo relacional, social, comunitário e político, diretamente vinculado à relação com os sujeitos sociais, à ação coletiva e, consequentemente, à transformação da sociedade.

As últimas décadas são marcadas por novos contornos nas estruturas políticas, sociais e econômicas nos países latino-americanos, o que nos requer uma análise cada vez mais minuciosa e atenta, já que ainda há vestígios e manutenção de males antigos que se desdobram no aumento da desigualdade e violência. Portanto, é emergente assumir esse horizonte comprometido com a libertação. Ainda que pareça utópico, é um caminho para um desenvolvimento de sociedades mais justas, contribuindo para que os sujeitos se percebam protagonistas de suas próprias vidas e possam transformar suas realidades e suas comunidades. 

Bibliografia

LACERDA JÚNIOR, Fernando e GUZZO, Raquel Souza Lobo. A realidade interpelante e o projeto de uma psicologia da libertação. In: GUZZO, Raquel de Souza Lobo; LACERDA JUNIOR, Fernando (orgs.). Psicologia Social para a América Latina: o resgaste da psicologia da libertação. 2ª ed. Campinas: Alínea, 2011.

LANE, Silvia Tatiana Maurer. O que é Psicologia Social. Coleção Primeiros passos, 16ª. ed. São Paulo: Brasiliense, 1ª ed. 1981.

LANE, Silvia Tatiana Maurer. A psicologia social e uma nova concepção de homem para a psicologia. In: LANE, Silvia Tatiane Maurer; CODO, Wanderley (Org.). Psicologia Social: o homem em movimento. 13ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2012.

MARTIN-BARÓ, Ignácio. O papel do psicólogo. Estudos de psicologia. 2(1), p. 7-27. 1997. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-294X1997000100002&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 17 de agosto de 2020.


[1] Se priorizará o uso do gênero feminino na caracterização da categoria de profissionais da área da psicologia ao longo do texto considerando que esta categoria profissional é majoritariamente composta pelo gênero feminino.

[2] A teologia da libertação é uma corrente teológica cristã que propõe perspectivas e ações baseadas na opção preferencial pelos pobres, onde a teologia, para concretização dessa opção, deve usar também as ciências humanas e sociais sendo coerente com a historicidade e com as mudanças das sociedades. 

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