REFLEXÕES SOBRE A EUCARISTIA

Por: Antonio Manzatto

O sacramento da eucaristia é fator de eclesiogênese porque constrói a igreja que se quer discípula de Jesus Cristo. O modelo eclesiológico que se quer construir repousa sobre a forma como se compreende e se celebra a eucaristia. Por isso talvez valha a pena perceber como as questões a ela relacionadas repercutem em nossa afirmação de fé e sua dimensão comunitária.

O primeiro ponto a destacar é que a eucaristia remete à própria prática de Jesus. Curioso perceber o quanto os evangelhos falam de mesa, de alimento e de refeição. Vários milagres de Jesus se relacionam a comida, e suas refeições são momentos de anúncio e de catequese; há parábolas que falam de banquetes e Jesus parece se comprazer em tomar refeições sempre em companhia de outras pessoas. Há uma prática jesuânica, a da refeição partilhada, que se liga ao anúncio messiânico realizado por ele. Vem da tradição vétero-testamentária a compreensão de que a época messiânica e de fartura, ou seja, quando vier o Messias haverá abundância de comida. Isso é uma boa notícia para os pobres, porque são eles que mais se preocupam com o que vão comer já que os ricos têm sua alimentação garantida. Entende-se por que o estabelecimento da justiça divina “sacia de bens os famintos e despede os ricos de mãos vazias”! A prática jesuânica remete, então, aos tempos messiânicos, como a comprovar que o Messias já chegou, e ele é Jesus de Nazaré.

Na abundância dos tempos messiânicos, assim como deveria ser em qualquer tempo, não se há de esquecer a importância da partilha. É curioso também perceber que, embora sempre esteja envolvido em refeições, Jesus nunca as toma sozinho. Não se diz uma única vez nos evangelhos que os outros esperaram enquanto ele se alimenta, ou que ele tenha tomado sua refeição solitariamente. Para ele a refeição é para ser partilhada, porque o tempo do Messias é o da instauração do Reino de Deus. Aliás, todos os estudiosos estão de acordo em dizer que o Reino de Deus constitui o centro referencial da vida de Jesus, de seu anúncio e de sua ação, como que o centro de sua missão. Por isso o Messias não traz apenas abundância, mas convivência, que é a marca do Reino de Deus: amai-vos uns aos outros! Por isso a refeição é sempre para ser partilhada, nunca apenas um ato biológico de sobrevivência: não se come sozinho porque na lógica do Reino de Deus não se vive sozinho. Não é de se estranhar, portanto, que ele tenha querido despedir-se de seus amigos em uma refeição, e que essa tenha sido a maneira pela qual seus discípulos tenham guardado sua memória, de sua vida, de sua morte, de sua ressurreição. A última ceia, por isso, se insere na lógica do comportamento de Jesus, não é evento isolado.

É dessa maneira que o evangelista João, em sua narrativa da última ceia, se propõe a relatar o lava-pés e não a instituição da eucaristia, porque sobre ela Jesus já havia pronunciado um grande sermão no discurso do Pão da Vida. Mas a última ceia contém um elemento especial no horizonte a tradição sinótica e paulina, que é a alusão à morte de Jesus e sua afirmação de que pão e vinho são sua carne e seu sangue, como João já dissera no distante capitulo 6 de seu evangelho. Parece haver uma clara referência ao Reino de Deus, não apenas porque sua morte se entende a partir de sua pregação sobre o Reino, mas também pelo fato de que ele, Jesus, é o dom de Deus para a humanidade e entrega sua vida em favor da vida do mundo: para que a multidão viva, ele se dá em alimento. Assim, a memória de Jesus se atualiza na refeição comunitária que afirma sua presença como dom para que a comunidade que crê tenha vida.

Parece que desde cedo os discípulos entenderam a eucaristia dessa maneira. Rapidamente perceberam que a historicização do Reino de Deus exigia a formação de comunidades. O Reino não é uma dimensão meramente individual, mas coletiva. Jesus, o Messias, anunciou a chegada do Reino e o fez acontecer já na história. A formação das comunidades cristãs é exigência da vivência do Reino, porque no coletivo é que se pode viver a verdadeira dimensão do “amai-vos uns aos outros”. Tal comunidade não se entendia apenas de maneira espiritual, mas se a compreendia no horizonte do costume de “partir o pão pelas casas”, celebração na qual se fazia memória de Jesus, de sua ação e de seus ensinamentos. A esse respeito existe unanimidade dos especialistas em dizer que o “partir o pão pelas casas” é uma referência à eucaristia. Temos, portanto, dois elementos bastante antigos a levar em consideração na maneira de compreender a eucaristia, a prática jesuânica e a prática da comunidade primitiva.

Paulo insiste na dimensão eucarística da comunidade cristã. Ou seja, a eucaristia não é simplesmente um tipo de celebração que se faz, mas uma forma de vida, um jeito de viver que remete à maneira pela qual Jesus entendia a existência humana. Assim, ele lembra à comunidade que a eucaristia remonta ao próprio Jesus com destaque para a última ceia, a entrega de sua vida para a vida do mundo. Mas ele atrela rapidamente a isso a maneira partilhada de vida que os cristãos devem encarnar, e por isso critica aqueles que comem sem pensar nos outros, porque comem “sem distinguir o corpo”. Aqui há uma passagem que não pode ser escamoteada. Muito se insiste, e com razão, que não se pode desconhecer a verdade eucarística segundo a qual o pão é o próprio corpo do Senhor, e assim “sem distinguir o corpo” seria compreendido como não reconhecer a presença real de Jesus nas espécies eucarísticas. Sim, isso é verdade e cremos assim, ainda que não seja muito evidente que essa seja a perspectiva paulina. Há que se reconhecer que Paulo se refere à vivência comunitária porque quem come sem pensar nos outros não reconhece o corpo que é a própria comunidade, que ele já afirmara como “corpo de Cristo”. As perspectivas não são excludentes, pois pedimos sempre, em cada celebração eucarística, que nos tornemos “’um só corpo e um só espírito” e nos reconhecemos como “Corpo de Cristo”, membros do próprio Cristo. Dois elementos, então, se destacam: a referência a Jesus e sua pregação, e a forma de se compreender a prática comunitária como vivência do Reino de Deus.

As implicações eclesiológicas da eucaristia parecem evidentes a partir daqui. A insistência nos aspectos sacrificiais do sacramento, que são verdadeiros, tendem a favorecer uma perspectiva sacerdotal, porque sacrifício é algo que apenas o sacerdote faz. Não nos espantamos, pois, que o modelo eclesiológico desenvolvido em muitos lugares seja clericalista e o padre visto principal e unicamente como sacerdote, não tanto como presbítero ou pastor. Não é de se estranhar que a profecia tenha se arrefecido, e muito, nos últimos tempos. O sacramento da eucaristia é sacrifício em que o próprio Cristo se oferece como sacerdote, altar e cordeiro, e aqui fundam suas raízes a teologia do sacerdócio “in persona Christi”. Tudo isso é verdadeiro, e se compreende como tais elementos conduzem a uma forma de organização e vivência da comunidade eclesial.

As devoções eucarísticas são perfeitamente compreensíveis e louváveis enquanto remetem ao sacramento da eucaristia, especialmente sua celebração. Afinal, é na celebração, na reunião da comunidade, que afirmamos a transubstanciação, e por isso a devoção eucarística remete àquele momento e àquela verdade. Fora disso ela se arrisca a perder significação. Na verdade, o aspecto celebrativo enfatiza especialmente a realidade comunitária do sacramento, que pode ser ocultada por devoções excessivamente individualistas.

Passa a ser de fundamental importância perceber como se pensa a celebração da eucaristia. O Concílio Vaticano II insiste que a assembleia celebrativa é a reunião do Povo de Deus que, em diversidade de ministérios e em diferentes maneiras de viver sua pertença, realiza a celebração. O padre, portanto, celebra com a comunidade e não simplesmente para a comunidade, de tal forma que as pessoas não assistem à celebração, mas dela participam ativamente, cada qual à sua maneira. O princípio coletivo precisa ser bem afirmado, e por isso o Concílio reconhece inclusive a possibilidade da concelebração e não de múltiplas eucaristias concomitantes no mesmo espaço.

Diversas questões podem ser elencadas então, como as devoções eucarísticas dentro da celebração eucarística, o que precisa ser bem pensado, as celebrações em latim ou aquelas sem participação da comunidade. A situação desencadeada pela Covid-19 obrigou às celebrações sem povo, às vezes apenas com o padre, e forçou a comunidade a acompanhar tais celebrações de maneira remota. Se de um lado isso pode favorecer o desenvolvimento da eclesiologia do corpo, por outro lado é preciso reconhecer a realidade de “comunidade virtual” que, de alguma forma, celebra porque está reunida. Nessa situação, a ideia de “comunhão espiritual” assume significado devido à impossibilidade de participação na partilha eucarística, na “refeição partilhada”. O fato é que mesmo quando celebra sem povo, o padre celebra “com a Igreja”, e quando os cristãos acompanham a celebração pela mídia, dela participam “com a Igreja”, porque a dimensão coletiva é integrante da compreensão eucarística.

E isso é verdade também no que se refere à dimensão profética da eucaristia, que anuncia o mundo novo, onde os pobres poderão ter satisfeitas suas necessidades por conta da partilha e da instalação da justiça, mas sobretudo anuncia a plenitude do Reino de Deus na consumação dos séculos, quando Deus será tudo em todos e viveremos, todos, o grande banquete que o Pai preparou para todos os seus filhos e filhas. A dimensão escatológica é parte integrante da eucaristia e está sempre presente, ainda que em celebrações participadas através dos meios de comunicação.

O que precisa ser ultrapassado é a compreensão individualista da eucaristia. Ela não é prêmio, consolo, alimento ou devoção a ser vivida sem referência ao coletivo, à comunidade, aos irmãos e irmãs. Por isso não se compreende quando pessoas ou grupos querem “de volta a santa missa” como se fossem seus proprietários e como se não houvesse uma referência comunitária que é constitutiva da eucaristia. Não se pode pensar em querer algo para si quando isso pode colocar vidas em risco. Não se pode pensar a eucaristia como prêmio ou obrigação sem que se leve devidamente em conta sua referência a Jesus e o anúncio do Reino de Deus, que significa a forma de vivência comunitária da fé. Afinal, a celebração da eucaristia pode ser apenas um rito religioso se desprovido de seu elemento essencial, a fé em Jesus de Nazaré, o Cristo de Deus.

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