Relatos de uma história inacabada

Este texto é uma conversa, atravessada por minhas memórias, com autoras e autores de obras impressas ou daquelas ainda não escritas, marcadas na vida pessoal, coletiva, no bairro, na cidade. É texto coautoral. É retalhos de um pano em tecimento permanente.

Por: Ivânia Vieira¹

Este texto é uma conversa, atravessada por minhas memórias, com autoras e autores de obras impressas ou daquelas ainda não escritas, marcadas na vida pessoal, coletiva, no bairro, na cidade. É texto coautoral. É retalhos de um pano em tecimento permanente.

Nos anos de 1990, Pe. Humberto Guidotti, jesuíta que dedicou 38 anos da vida à Amazônia, ao Maranhão, e mais 10 anos ao povo de Moçambique, dizia a nós, jornalistas, da importância dessa profissão: “vocês, jornalistas, são os profetas do tempo presente. Têm que escutar, enxergar nas ruas, nas lixeiras e para além delas, traduzir nos seus escritos as realidades do povo, das crianças, das mulheres. Incomodar os que estão acomodados e acalmar os aflitos, os famintos, os sem direito”.

O recado-alerta permanece em mim perturbadoramente, e me remete a passeios pelo bosque do conhecimento. O que a história e o jornalismo têm em comum? O que aproxima e distancia essas áreas de conhecimentos? Meu avô Sebastião, descobri na idade adulta nos bancos da universidade, me fez ampliar a curiosidade sobre a busca de resposta a determinados eventos e realidades. Neste caso, as histórias contadas por vô Sebastião, pescador, nos rios amazônicos, sem escolaridade e detentor de conhecimentos batizados de saberes, na academia.

O acesso ao conhecimento acadêmico ajudou a melhor sistematizar os relatos-conversas com o pescador e reconhecer nas páginas dos livros sobre história da Amazônia, do Amazonas, dos povos amazônicos elementos religadores, reveladores e esclarecedores da nossa história, do nosso lugar na história das sociedades no mundo. Nessa busca das proximidades, há uma referência atribuída a Philip Graham, norte-americano, editor de jornal que, em 1953, desenhou a dimensão do que pregava Pe. Guidotti nos encontros com jornalistas. “Escrevemos 365 dias por ano o primeiro rascunho da história, e essa é uma grande tarefa”.

Do educador, jornalista e assessor presidencial Douglass Cater tem uma outra: “o repórter é aquele que a cada 24 horas determina uma primeira vez, o esboço da história”. São inúmeros os elementos que aproximam as áreas História e Jornalismo embora, por aqui, estejamos mais distantes que próximos, o que expõe o quanto ainda predomina a ideia de propriedade privada nesses modelos prevalentes dos campos de conhecimento.

Vencer os muros invisíveis, aproximar e aprimorar as investigações, as perspectivas do historiador e do jornalista é um dos desafios nessas duas áreas em diferentes espaços de atuação desses profissionais. No Brasil, o Dia do Historiador, 19 de agosto, foi instituído em 2009, pela lei nº 12.130, como forma de também homenagear o escritor Joaquim Nabuco (1849-1910). Uma das sínteses para designar o historiador ensina que este profissional tem a tarefa de resgatar, preservar e refletir sobre as marcas impressas pelas sociedades em suas experiências terrenas, hoje em conexão com o virtual.

VIAGENS IMAGINÁRIAS, VIAGENS REAIS

No início dos anos de 1980, ao vivenciar a primeira fase do curso de Jornalismo, na Universidade Federal do Amazonas (Ufam), quando os campos disciplinares estavam tomando corpo, o Prof. Ribamar Bessa Freire, hoje atuando na Universidade Federal Fluminense, nos recepcionou com a disciplina História da Amazônia. Uma etapa de aprendizados profundos sobre a região, as culturas e os povos amazônicos. Aulas que promoviam viagens imaginárias pela Amazônia profunda a partir da cadeira de madeira numa das salas do Instituto de Ciências Humanas e Letras (ICHL); e viagens reais para conhecer realidades entre documentos (fotografias, reportagens, crônicas dos viajantes, jornaizinhos mimeografados que produziam relatos de trabalhadores, das organizações de mulheres metalúrgicas e da floresta, dos povos indígenas).

A história da Amazônia degustada naquele tempo de universitária caloura apresentou caminhos ao aprendizado e à pesquisa vivos e duradouros. Sigo o caminho que se faz ao caminhar, parte dessa compreensão aprendi ali, nas aulas de História da Amazônia. Os ensinos em História foram e são importantes na minha prática jornalística. São instrumentos que ajudam a qualificar a entrevista, a reportagem ou a produção da notícia a partir da percepção dos elementos que compõem as marcas das experiências sociais. Quando o interdisciplinar é exercitado eticamente crescemos em potencialidade de reflexão crítica e na produção de relatos históricos e jornalísticos fundamentais à democracia e ao aprimoramento desse modelo político.      

Alguns homens e mulheres, historiadores, oferecem ao mundo contribuições relevantes e de efeitos decisivos. Longe de querer classifica-los por ordem de importância ou vê-los apenas por uma lente que ao ignorar erros atrofia a condição humana, cito neste fragmento da história dos historiadores Heródoto (Sec.V, a C), apresentado como o ‘pai da História’, cujos relatos nos proporcionaram conhecer a antiguidade; o francês Gustave Glotz, para quem a história nunca segue um curso simples e lógico; o britânico Eric Hobsbawm (1917 -2012), com seus escritos demarcatórios em torno da humanidade a partir de “Era das Revoluções” (1789 -1849), “A Era do Capital” ( 1848 -1875), “A Era dos Impérios” (1875-1914), e “Era dos Extremos” ((1994); o jesuíta norte-americano Francis Paul Prucha (1921 -2015), e a sua “O Grande Pai”.

As mulheres historiadoras que desafiam as muralhas da invisibilidade patrocinada pelo sistema de ideias do mundo patriarcal. A lista é significativa e merece espaço maior. A americana Elizabeth Eisenstein (1923 – 2016) que em seus estudos percorreu entre história e jornalismo, sofreu críticas contundentes e as respondeu com igual força no esclarecer e formular novas pontuações. Autora de “A Revolução da Cultura Impressa”, 1998, a autora afirma na obra que “de todas as novas características trazidas pela capacidade de duplicação própria da imprensa, a de preservação é possivelmente a mais importante” (p. 95). A dimensão virtual da realidade, das formas de registro desafiam e criam possiblidades a historiadores.

A norte-americana Joan Wallach Scott, em atividade, estudou o movimento operário e história intelectual francesa e, a partir dos anos de 1980, passou a dedicar-se à história das mulheres introduzindo a perspectiva de gênero. Scott é uma referência nos estudos de gênero em todo o mundo. O artigo “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”, de 1986, tornou-se essencial para a formação do campo de história de gênero não somente nos estudos históricos anglo-americanos, mas em outros países, como o Brasil. A paulista Laura de Mello e Souza, em atividade, tem uma lista vasta de produção literária entre essas o retrato de um país que se iniciava como, entre a Monarquia e a República. Trata-se do livro “Desqualificados do ouro: a pobreza mineira no Sec. XVIII”, publicado em 1983; e organizou o “História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa”, de 1997. A historiadora carioca Mary del Priore, colecionadora de prêmios, escreveu 15 livros, dezenas de artigos, resenhas, destaco entre a lista longa dessa produção os volumes 1, 2, 3 e 4, de “História da Gente Brasileira”, e a coletânea de 19 artigos que formam a “História das Mulheres no Brasil”, de 1997, da qual é organizadora.

Quantas histórias para serem resgatadas, retiradas do sileciamento, apresentadas, configuradas, reconfiguradas, escritas e ensinadas. Que dessa profusão de vestígios sejam insubordinadamente animados os historiadores brasileiros a seguirem as pegadas e proliferarem os relatos históricos dos povos do Brasil, da Amazônia e da Pan-Amazônia, das cotidianidades.  Afinal, como afirma o historiador francês Alain Corbin, “tudo está para ser escrito” e a história das sensibilidades anda os seus primeiros passos.

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¹Ivânia Vieira é jornalista e professora na Faculdade de Informação e Comunicação da Universidade Federal do Amazonas (FIC-UFAM)

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