Vida Consagrada e Papa Francisco: novos odres

Desde o início do pontificado, Francisco, o primeiro Papa Jesuíta da história da Igreja, não teve receio de dar a pauta da VRC para este momento líquido da humanidade no qual vivemos, de um “colapso do pensamento, da ação a longo prazo, da fragmentação da vida, com forte incentivo de atitudes competitivas que rebaixa a colaboração e o trabalho em equipe”[1].

Por: Pe. João da Silva Mendonça Filho, sdb

Quando, em 2014, Francisco convocou as pessoas consagradas a celebrar o Ano da VRC em comemoração do quinquagésimo aniversário da Constituição dogmática Lumen Gentium que, no capítulo 4º fala dos religiosos e o Decreto Perfectae Caritatis, sobre a renovação da VRC[2] recordava de forma muito clara que “vós não tendes apenas uma história gloriosa para recordar e narrar, mas uma grande história a construir! Olhai para o futuro, para o qual vos projeta o Espírito a fim de realizar convosco ainda coisas maiores”. Assim, Francisco delineava três objetivos daquele Ano e, consequentemente, uma agenda para todos nós como uma permanente inquietação: Olhar com gratidão para o passado; Viver com paixão o presente e abraçar com esperança o futuro. Dois anos depois, 1º de fevereiro de 2016, no jubileu da Vida Consagrada, Francisco retorna a se pronunciar, desta vez de forma espontânea, agregando três pilares para todos nós: A profecia; a proximidade e a esperança.  

Acredito que esses marcos dados pelo Papa formam um projeto a ser percorrido por todos nós naquela dimensão que São João Paulo II chamou de fidelidade criativa, ou seja, “um apelo a conseguir a competência no próprio trabalho e a cultivar uma fidelidade dinâmica à própria missão, adaptando, quando for necessário, as suas formas às novas situações e às várias necessidades, com plena docilidade à inspiração divina e ao discernimento eclesial”[3].

Neste artigo desejo brevemente desenvolver os argumentos dessa convocação que pede “vinhos novo, odres novos” (Mt 9,16s).

  1. Permanentes inquietações para a VRC
  1. Olhar com gratidão o passado: Papa Francisco insiste muito na ideia de que,

Repassar a própria história é indispensável para manter viva a identidade e também robustecer a unidade da família e o sentido de pertença dos seus membros. Não se trata de fazer arqueologia nem cultivar inúteis nostalgias, mas de repercorrer o caminho das gerações passadas para nele captar a centelha inspiradora, os ideais, os projetos, os valores que as moveram, a começar dos Fundadores, das Fundadoras e das primeiras comunidades. É uma forma também para se tomar consciência de como foi vivido o carisma ao longo da história, que criatividade desencadeou, que dificuldades teve de enfrentar e como foram superadas. Tudo é instrutivo, tornando-se simultaneamente apelo à conversão. Narrar a própria história é louvar a Deus e agradecer-Lhe por todos os seus dons”[4].

Essa mesma ideia foi reforçada na mensagem para o 54º dia Mundial das comunicações de 2020, onde Francisco afirma que é preciso “revestir-se» de histórias para guardar a própria vida. Não tecemos apenas roupa, mas também histórias”[5]. Trata-se de um verdadeiro carismogênesis[6], ou seja, a narrativa criadora de como o Espírito suscitou na mente, vontade e coração do fundador (a) o olhar de Deus para uma realidade concreta e urgente. Essa raiz fundacional não pode jamais ser menosprezada em nome de uma transmodernidade[7].

  1. Viver com paixão o presente: a conexão com os fundadores (as) é muito importante, porém, não pode ser uma norma não normanda para a vida do Instituto. A única e fundamental normatividade é a incondicional adesão a Jesus Cristo, como bem nos recorda o documento de Aparecida: “Ele é o filho de Deus verdadeiro, o único Salvador da humanidade. A importância única e insubstituível de Cristo para nós”[8], ou ainda, citando Aparecida, precisamos viver o presente como peregrinos cheios de esperança e alegria, como os primeiros seguidores de Jesus que,

Se sentiram atraídos pela sabedoria das palavras de Jesus, pela bondade de seu trato e pelo poder de seus milagres. E pelo assombro inusitado que a pessoa de Jesus despertava, acolheram o dom da fé e vieram a ser discípulos de Jesus[9].

Esse encantamento do primeiro amor nos motiva a viver o presente como dádiva de Deus como “peritos de comunhão numa sociedade marcada pelo conflito”[10], na qual as desigualdades, a convivência cada vez mais ameaça entre as diferentes culturas, a exclusão dos pobres e o modelo econômico neoliberal fere a dignidade humana, a VRC é convocada a ser presença crível do Espírito Santo na “cultura do encontro”, como bem ensina Papa Francisco.

  1. Abraçar com esperança o futuro: a criação do futuro começa aqui e agora, mesmo que em sua temporalidade. Caberá ao diálogo intergeracional criar as possibilidades para que as novas gerações possam exercer o protagonismo nas fases da formação e da missão com a credibilidade conquistada no esforço da fidelidade dinâmica para escrever uma grande história no futuro. Portanto, não podemos cair na tentação de contar apenas com números e grandes obras, mas com a qualidade de nossa presença em meio das incertezas.

É fato que, a pandemia nos surpreendeu e lançou sombras sobre as luzes de nossas certezas, porém, a forçosa parada colaborou, em grande parte, para rever nossas agendas e planos, nosso ativismo e o fazer calculista que até então parecia garantir nossa identidade. Estávamos esquecendo que a VRC se caracteriza pela alegria pascal, que numa sociedade da exclusão, do sucesso e da saúde, somos fracos porque Ele é forte (2 Cor 12,10). Precisamos reassumir o empenho da atração evangélica e não do proselitismo de nossas ações e manter nossas lâmpadas acessas com o combustível da fé, esperança e caridade.

Assim, abrimos espaço para a última parte deste artigo com os três pilares para a VRC.

  1. O pilar da profecia: a VRC é convocada desde seus inícios a ser uma voz profética, de tempos em tempo, na contramão da mediocridade e da mesmice. O profetismo é inerente à VRC porque concretiza nossa missão carismática no seguimento radical de Jesus Cristo. Francisco faz um alerta quando diz que a “profecia é dizer que existe algo de mais verdadeiro, mais bonito, maior, melhor ao qual todos somos chamados”[11].
  2. O pilar da proximidade: Na ocasião do Jubileu da VRC papa Francisco afirmava com veemência que os religiosos não podem ser pessoas isoladas, afastadas, indiferentes, movidas por fofocas, mexericos, terrorismo comunitário, mas próximas. Neste tempo de quarentena sofremos, assim ouvi de alguns religiosos, com o cancelamento de tantos compromissos e uma “clausura forçada”. Certamente tivemos a oportunidade de rever nossa real presença afetiva e efetiva na comunidade. Nosso ambiente não é um hotel, nossas paredes não foram feitas para esconder pessoas e problemas, mas sim, para ser lugar de alegria e festa de comunhão. Uma igreja religiosa doméstica que sabe encontrar novas formas de oração, de maior tempo para estar juntos e partilhar das alegrias e esperanças, sonhos e pesadelos. A proximidade é isto. Ser presença ativa e não mera convivência convencional.
  3. O pilar da esperança: É certo, nos recorda Francisco, que a diminuição das vocações, o fechamento de obras, mosteiros e até províncias, causa tristeza, no entanto, não podemos desanimar, muito menos deixar de acreditar com os exemplos de Ana, mãe de Samuel e do velho Simeão que canta ao ver o menino Jesus. São expressões da esperança viva no Senhor da história que não deixa seu povo órfão e abandonado. Deus é o Emanuel. Por outro lado, precisamos continuar rezando, batendo na porta do coração de Deus para que envie novos operários para a messe. “Nossa esperança está no Senhor”[12].

[1] BAUMAN Zygmunt, Tempos líquidos, tradução Carlos Alberto Medeiros, Ed, Zahar, Rio de Janeiro, 2007, p. 9.

[2] Francisco, Carta apostólica às pessoas consagradas para proclamação do Ano da Vida Consagrada, Roma 21/11/2014. http://www.vatican.va/content/francesco/pt/apost_letters/documents/papa-francesco_lettera-ap_20141121_lettera-consacrati.html, acesso 07/07/2020.

[3] João Paulo II, Exortação apostólica pós-sinodal Vita Consecrata, Roma 25/03/1996. http://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/apost_exhortations/documents/hf_jp-ii_exh_25031996_vita-consecrata.html, acesso 07/07/2020, n. 37.

[4] Francisco, Carta apostólica às pessoas consagradas para proclamação do Ano da Vida Consagrada, n. 1.

[5] Francisco, Mensagem para o 54º dia mundial das comunicações sociais, Roma 24/01/2020. http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/messages/communications/documents/papa-francesco_20200124_messaggio-comunicazioni-sociali.html, acesso 07/07/2020.

[6] O termo foi criado por mim para avaliar, à luz das formas e da tradição dos carismas, a natureza e a capacidade de reorganização da VRC ao longo do tempo.

[7] Conceito que significa a transversalidade que existe entre vários fenômenos, mundo global, interativo, multicultural, que transcendem a modernidade e a tornam, por vezes, efêmera, frágil e até soturna (Cf. SCHUSCHNY, Andrés, Las avalanchas de la transmodernidad (2013), In https://humanismoyconnectividad. Wordpress.com/tag/cambio-epocal/

[8] CELAM, V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, Documento de Aparecida, CNBB, Brasília, 2007, n. 22

[9] Ibid, n. 21

[10] Francisco, Carta apostólica às pessoas consagradas para proclamação do Ano da Vida Consagrada, n. 2

[11] Francisco, Encontro do Papa Francisco no jubileu da VRC, http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2016/february/documents/papa-francesco_20160201_giubileo-vita-consacrata.html, acesso 08/07/2020.

[12] Ibid

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